O último goitacá...

Ao fazer uma visita recente a cidade de Campos dos Goytacazes, e ir fazendo as naturais perguntas a respeito de uma cidade que pouco conheço, busquei informações junto ao meu amigo Lairte Almeida a respeito do paradeiro dos “primeiros” habitantes daquela terra, e que veio a ganhar este nome devido aos povos que ali habitavam. A resposta de meu nobre colega foi que estes indígenas desapareceram daquelas paisagens, e que hoje permanecem vivos apenas no nome da cidade.

Resolvi então fazer uma busca a respeito do paradeiro dos mesmos, começando pelo monumento dedicado aos goitacás, e que se encontrava na entrada da cidade e fora retirado pela prefeitura, mas que hoje ninguém sabe onde se encontra. Encontrei no máximo imagens da retirada do monumento. A figura encontrada expõe de forma bem elucidativa o que de fato ocorreu com estes seres humanos: foram expulsos de suas terras e exterminados num verdadeiro genocídio ainda pouco explicado.

É possível acreditar que a retirada de tal monumento possa ser derivada de certo constrangimento, devido à contradição de em “suas” terras, não serem encontrados nenhum representante deste povo, de não haver instituições que busquem preservar a memória e o passado, de contar suas histórias e manter viva uma cultura rica, proporcionando conhecimento e até produzindo meios de não deixar que coisas parecidas aconteçam novamente, tendo como parceira da crueldade a nossa infeliz passividade e falta de memória.

As populações indígenas que habitavam estas terras quando da chegada dos povos europeus tiveram a partir deste momento duas opções: a primeira seria se tornar escravo e irem morrendo aos poucos, devido ao sofrimento e as doenças comuns a europeus, mas devastadoras para os indígenas devido a não possuírem resistência a uma simples gripe; ou promover franca resistência lutando ou fugindo para o mais longe possível (caso de muitas tribos que fugiram para o norte). Muitas foram às guerras promovidas pelo homem branco em busca de gentios, ou negros da terra como era costume chamar os indígenas. As guerras eram chamadas de “justas”, e eram autorizadas pelas autoridades competentes, ou pelo próprio monarca. Estima-se que quando da chegada dos portugueses ao Brasil haverem algo em torno de cinco milhões de pessoas já vivendo nestas terras. É um número elevadíssimo se levarmos em consideração a famosa frase que aprendemos na escola; o “descobrimento” do Brasil! Estes mesmos cinco milhões teriam sido exterminados em sua grande maioria já no primeiro século da colonização. O problema que se colocava diante dos europeus quando aqui chegaram era que havia “terras em abundância e necessidade de escravos; esta fórmula sem dúvida muito tinha a ver com a formação da sociedade colonial brasileira”. Os que sobreviveram à escravidão e ao extermínio estariam hoje em número de pouco mais de 300 mil pessoas. O caso das tribos goitacás seria o das tribos que resistiram e foram exterminadas por sua valentia. Há vários relatos que tratam de tal comportamento. Alguns relatos super exagerados de viajantes que por aqui estiveram contam como esses homens pescavam tubarões “usando apenas um pedaço de pau afiado nas extremidades. Ao mordê-lo, o tubarão ficava preso e era então puxado para fora do mar”.

O fato é que no primeiro século da colonização portuguesa, era inviável esta empreitada sem a utilização da mão de obra escrava indígena. Várias leis foram editadas e revogadas a respeito da liberdade dos indígenas. Uma lei de 1570 apregoava a liberdade dos indígenas, mas dizia ao mesmo tempo que se fossem em guerras justas os mesmos poderiam ser escravizados. “as causas legítimas das guerras justas seriam a recusa á conversão ou o impedimento da propagação da fé, a prática de hostilidades contra vassalos e aliados dos portugueses e a quebra de acordos celebrados.” Em 1609 tivemos nova lei que declarava que todos os índios na América portuguesa eram livres. Essa lei seria revogada em 1611 por pressão dos padres jesuítas e pelos colonos portugueses, que necessitavam da manutenção destas pessoas como escravas para a manutenção de suas empresas de exploração tupiniquins.

Ao tentar conciliar projetos incompatíveis, embora igualmente importantes para seus interesses, os gentios cuja conversão justificava a própria presença européia na América, eram mão de obra sem a qual não se podia cultivar a terra e, defendê-la de ataques inimigos tanto europeus quanto indígenas. Enfim, sem a qual o projeto colonial era inviável.

A Historiadora Sheila de Castro em “A Colônia em movimento” nos relata que os viajantes que pretendiam se aventurar pela região dos campos dos goitacases recebiam informações assustadoras a respeito dos habitantes do local. Os ditos “índios” seriam devoradores de carne humana, “exímios caçadores de tubarões e jacarés, vingativos e colecionadores de ossos humanos. Contavam que os poucos que mantiveram contato com os famosos goitacases não ficaram vivos para relatar o que viram”.

As lendas em torno destes goitacases eram muitas. Falava-se, por exemplo, que caçavam até “tigres” com seus arcos. Eram apresentados não como seres humanos, mas sim como bestas com aparência humana. É possível entender estas descrições a partir do ponto de vista daqueles que pretendiam tomar estas terras daqueles povos, e precisam de uma justificativa. Logo, ao promover guerras não às promoviam contra inocentes, mas sim contra bestas devoradoras de homens. Desta forma a consciência ficaria mais tranqüila após os genocídios.

De acordo com o relato de Simão de Vasconcelos os goitacases eram os ocupantes de uma região notável e aprazível. Uma das mais interessantes da colônia. O problema destas terras então era que elas estavam “defendidas por povos bárbaros e selvagens, que resistiam ao contato europeu”, e estes mesmos europeus a queriam de qualquer forma. Então se promoviam as guerras “justas”.

“Sendo a guerra justa possibilidade indiscutível de escravização lícita, pode-se imaginar o interesse que sua declaração tinha para os colonizadores”.

O Historiador campista Júlio Feydit que escreveu no fim do século XIX, assim nos relata a impressão de um viajante francês conhecido como Knivet, que assim descreveu os goitacases:

“Os ouetacás não cessam de guerrear seus vizinhos, e não recebem estrangeiros entre eles para negociarem. Quando eles não se julgam os mais fortes fogem com ligeireza comparável a dos veados. Seu porte sujo e asqueroso, seu olhar feroz e sua fisionomia brutal, fazem dele o povo mais odioso do universo. Ele se distingue da maior parte dos indígenas do Brazil pela sua cabeleira a qual deixam cair às costas e só cortam um pequeno círculo na fronte. Sua linguagem não se parece com a de seus próximos vizinhos.”

Como podemos ver, os goitacases são descritos como extremamente ferozes e ágeis, além de não gostarem nem um pouco do contato com o homem branco. Este comportamento será decisivo para seu extermínio. Feydit apresenta relato de Simão de Vasconcelos que escrevera sobre a vida do padre João de Almeida da Companhia de Jesus na província do Brazil. Vasconcelos fez uma descrição a respeito do fim destes povos, descrevendo como teriam sido mortos pelos portugueses. Na referida descrição o autor diz que “a toda pessoa estranha que encontrava, fazia pasto de seus dentes.” Declarando que para estes índios não haveria coisa melhor do que comer carne humana. A gota d’água para dar fim a estas pessoas teria sido o ataque a um navio português que teria ancorado no ano de 1630 nas praias daquela região. Vasconcelos conta que os tripulantes teriam fugido por terra antes de serem apanhados pelos goitacás, mas a notícia que teria se espalhado era a de que eles teriam sido devorados pelos índios ferozes. Os “responsáveis” pelo massacre teriam sido os índios das capitanias de Cabo Frio e do Espírito Santo, que teriam ido até o local para acudir (?) aos portugueses. Ao chegarem e apenas encontrar destroços do navio, que teria de fato sido destruído pelo tempo e pelas marés, imaginaram que teria sido destruído pelos goitacases. A partir desta impressão, as tribos que vieram socorrer os portugueses resolveram dizimar os índios campistas. “feitos em um corpo deram sobre os índios e os mataram todos; e o que mais, que não contentes com esta vingança entraram sertão até as suas aldeias e a todos os mais que se acharam homens, mulheres e meninos deram a morte, sem perdoar sexo, idade e destruindo as aldeias acabando por uma vez aquela tão nociva nação de gente, tão odiosa á todo hospede e a todo caminhante; ficando dali em diante seguras e tratáveis aquelas campinas.”

A descrição de gente tão bárbara pode ser explicada, como já citado anteriormente, pela necessidade de se encontrar justificativas para seu extermínio. Declarar que não possuíam deuses, ou deus, que comiam carne humana e eram extremamente ferozes era uma forma comum de descrição feita pelos colonizadores dispostos a tomar novas terras e escravizar ou, em último caso, por fim aquelas vidas. Isto não se deu apenas com os povos destas terras brasileiras. Vários foram os povos mundo afora vitimados a partir destes estereótipos. Um exemplo foi o ocorrido do outro lado do mundo com os habitantes originais da Tasmânia, que tendo certa hostilidade e desconfiança com relação ao homem branco, foram em apenas uma geração totalmente dizimados. Não há hoje sequer um habitante original daquele povo naquele país. Os últimos membros deste povo teriam sido aldeados por um pastor evangélico, que teria dito que melhor era eles morrerem ali, na aldeia, do que estarem nas matas a mercê dos colonos ingleses. A última pessoa daquele povo teria morrido no ano de 1883 na própria aldeia, já idosa e sem filhos. Eram em número de cinco mil pessoas antes da chegada dos ingleses.

No caso dos goitacases, temos poucos indícios de seu paradeiro, ou do paradeiro de algum sobrevivente. É sabido que a cultura e o conhecimento que aquele povo detinha se perdeu. O que temos são relatos como os citados anteriormente descrevendo os indígenas a partir do olhar do conquistador, que não é de forma alguma imparcial.

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