Em homenagem ao Natal - O Baú Sonhador

O exterior daquela rara peça de antiquário já apresentava pequenas marcas da deterioração implacável do tempo. Mas seu conteúdo, garimpo sedimentado de recordações, nunca lhe pareceu tão vigoroso. Ilusório relicário que lá feneceu por meses, anos, sem ser novamente tocado pela mão humana, muito menos por uma minúscula e sonhadora mão de menino.

Aquele baú pertencera a seu avô, objeto inestimável, mantido em segredo como as coisas que jamais caberão em arquivos ou em caixotes de madeira. Guardado no porão, despertava a curiosidade de radiografia daquele incansável menino.
Houve uma primeira vez em que o menino desceu à câmara de seus sonhos, proibida enfaticamente por seus pais. Foi quando por um proposital descuido, sua pequenina bolinha de meia caiu nos degraus da escadaria que convidava ao inquietante cômodo, aí ele se deteve diante daquele fantástico baú.
Girou inúmeras vezes, dando intermináveis voltinhas, como que demarcando o território do pirata para descobrir melhor lugar em que o tesourou seria enterrado. Desconfiado, inicialmente por ter desobedecido às recomendações de seus pais, agora temia, mas sem recuar, quais incríveis histórias estariam segredadas no interior daquela fascinante caixa aveludada.
Quis se sentar no baú, mas tomado de tremor e arrepios, desistiu da empreitada. Dirigiu seu olhar para o alto da escadaria, num lampejo de arrependimento por estar naquele lugar, mas o chamado sedutor do volumoso objeto encantado o resgatou novamente à realidade de que estava ali, apaixonado pela estranheza que sentia.
Um grito de contentamento e surpresa quase escapou de sua garganta, tomado pela emoção. Quando percebeu as consequências que aquele barulho teria provocado, acordando seus pais e os levando ao local de seu delito, respirou fundo, recuperando o necessário fôlego para continuar sua aventura
Mesmo visivelmente deslumbrado, de vez em quando virava a cabeça em direção à fresta luminosa na parte inferior da porta, vigiando os movimentos de um possível despertar dos pais, antecipando as sombras sonolentas que não deixariam mais as dúvidas persistirem.
Seus pais já dormiam quando o menino se levantou em plena madrugada, pegou a bolinha de meia que seu pai havia feito para lhe demonstrar suas peraltices do tempo de garoto na manhã do dia anterior, e se encaminhou para a margem da escadaria do porão, limite do desconhecido que insistia em chamá-lo.
Os sermões e puxões de orelha de sua mãe, reclamando para que não esfregasse as rodas de fricção dos carrinhos nos seus encerados e polidos pisos de tábua corrida, tinham sido finalmente válidos para compor seus planos.
Sem arranhar o chão, pois não faria barulho para não assustar seus pais, executou suas artimanhas. O silencioso deslizar da bolinha de meia foi brincadeira perfeita para alcançar seu objetivo, descendo as escadarias do porão, fingindo buscar sua bolinha que lá caíra.
A hesitação ao colocar o pé esquerdo no primeiro degrau que representava a abertura de um universo inimaginável, logo foi trocada pelo emocionante palpitar comparável ao de um arqueólogo quando desenterra a esperança em revolucionar a pré-história da humanidade, vindo à tona pelas mesmas mãos que escrevem páginas de fantasias.
O menino estava lá, imóvel e perplexo perante aquele inanimado, porém brilhante e atraente objeto, em cujo interior deveria conter inesgotáveis recordações com o poder de fazer os mortos retornarem com mais vivacidade do que tinham quando ainda gozavam em seus lânguidos e ordinários corpos.
De repente, o baú deu um salto, rodopiou por cento e oitenta graus no ar, e desabou com força total, fazendo um violento estrondo quando bateu no chão. O menino ficou atônito e quase desmaiou por estar frente a frente com as intempestivas manifestações de tal fantasmagórico fenômeno, permanecendo fixado, boquiaberto e de olhar arregalado, como se estivesse fincado raízes nas ranhuras das tábuas empoeiradas daquele porão.
Com rigores de uma formação religiosa, mas não mais austera quanto seus avós receberam, repetiu as orações que lhe ensinaram, conseguindo se afastar suficientemente do baú para segurar o corrimão da escadaria e, caso precisasse, correr para cima com a determinação daqueles que não perderam a capacidade de confiar nas coisas.
Com todo esse medo que o fazia não controlar a tremedeira de suas pernas, talvez não conseguisse se apoiar nos degraus e viria a se esborrachar sem dó nem piedade. E também, mesmo se tivesse forças para subir, não teria coragem de ficar em seu quarto vazio e escuro, indo se enrolar com as cobertas da cama em que seus pais dormiam.
Só que nesse caso - pensou - qual seria a reação deles? Certamente ficariam intrigados com tal atitude, pois, apesar da pouca idade, não era tão comum aconchegar-se entre seus pais, no meio da madrugada, respiração agitada, esbaforido e transpirando incessantemente. Eles iriam notar e, sem titubear, perguntariam o que aconteceu, com a característica entonação de uma legítima Santa Inquisição.
Paralisado, pernas trêmulas, suas divagações sobre a inflamada intrepidez de seus pais ao pegarem-no em flagrante cometendo gravíssima infração, cederam lugar à outra manifestação estrondosa daquele baú. Desta vez, o baú iniciou um macabro ritual. Foi se sacudindo como cachorro molhado, balançando, arrepiado, as últimas gotinhas insistentes que teimavam em não abandonar a sua pelagem. Virou cambalhota, ficou pelo avesso, deu três pulinhos e sossegou seu corpanzil na posição de origem, como se nada de incrivelmente inusitado tivesse acontecido.
O menino, estatelado, já não exibia os olhos arregalados, mas agora os mantinha bem fechados. No escuro de seus olhos, mexeu as pontas dos dedos, certificando-se que seus movimentos foram readquiridos. Ainda sem forças para dar passos largos, pôde apenas deslocar languidamente a perna direita, repetindo, em seguida, a mesma operação com a esquerda. Aquilo que a escuridão externa tirou, faltando coragem pelo medo automático que dele se apoderou quando as luzes se apagaram, a escuridão interna, dos olhos fechados, devolveu, retomando a confiança antes prejudicada.
Ainda com seus olhos bem fechados, entregou-se a um bailado desconfiado, com o corpo inclinado para frente, tateando tudo que encontrava adiante, e tentando adivinhar, pelo formato, a função de cada coisa. Assim, distraído pelo jogo tátil que inventara, pôde suavizar momentaneamente o intenso medo, aquele pavor que estremecia, esquecendo a covardia infantil, o que lhe permitiu abrir devagarzinho seus olhos para fitar aquele fabuloso baú, que tanto o espantava e o fascinava.
Foi aproximando lentamente, chegando bem pertinho. Ficou a uma distância tal que restavam apenas algumas polegadas separando a pontinha de seus dedos da superfície aveludada do baú. Hesitou por uns instantes ainda, mas resolveu tocá-lo, impulsivamente, logo depois que esteve com os dedos parados no ar como um boneco mecânico de vitrine de lojas, esperando que uma pessoa curiosa pudesse dar corda para reanimá-lo, reativando suas engrenagens quase enferrujadas.
A emoção daquele contato era indescritível. Não sabia avaliar racionalmente as nuances de sentimentos que lhe invadiam, não só pelo tato, mas pelos demais sentidos corporais. Temperaturas diversas, em uma profusão de intensidades, transmitiram-lhe sensibilidade. Figuras multicores, misturadas na palheta de um pintor, agraciaram sua visão. Sons, melodias, balbucios, hipnotizaram sua audição. Fragrâncias, aromas, perfumes entorpeceram seu olfato. Sabores os mais magníficos extasiaram seu paladar.
Então, foi transportado a um mágico cenário. Dentro de uma lona de circo, trapezistas, malabaristas, acrobatas faziam singulares e múltiplas performances espetaculares. Ameaçou se aproximar dos artistas executando seus números, mas algo o impediu. Um anteparo invisível oferecia resistência à sua passagem. Tentou mais uma vez furar o bloqueio, mas nenhum esforço adiantou, pois o anteparo não cedia aos impactos do menino.
Foi então que percebeu estar na parte interior do baú, que ficou transparente, dando visibilidade ao mundo externo. Procurou se comunicar com os circenses que estavam fora da caixa em que ele se encontrava, mas ninguém poderia ouvi-lo do lado de fora. Havia um isolamento acústico. Audição, visão, olfato, paladar, tato, nenhum desses sentidos seria captado pelas personagens que realizavam suas proezas no palco do circo. Apenas o menino gozava plenamente de seus sentidos. Para o mundo externo era como se ele não estivesse ali, estava invisível, sua presença não era percebida.
Começou a devanear sobre aquela situação, e logo se recordou das estórias que seu avô, antigo proprietário daquele baú, contava. Sua vida foi dedicada integralmente ao circo. Nasceu, cresceu, foi educado, amou, sofreu, chorou em um picadeiro, sob uma lona de circo. Seu avô havia lhe contado aventuras fantásticas sobre os palcos, o trapézio, as maravilhas que só aconteciam com ele sob a lona daquele circo.
Após a morte de seu avô, a iluminação do picadeiro se apagou junto com ele. Foram dias sofridos para seus pais. Ele ainda não entendia suficientemente essas questões de morte. Só compreendia pela dor, sem qualquer assimilação consciente, principalmente pela dor transmitida pelo choro de seus pais. Foram longos dias de luto. Seu avô morava com eles, em um humilde quartinho, há alguns anos, logo após ter perdido seu negócio, ter falido sua fábrica de sonhos, como carinhosamente chamava o circo, e hipotecado sua casa. Não tendo mais como pagar a hipoteca, perdeu todo seu patrimônio e foi obrigado a se mudar para a casa do seu filho, o pai do menino.
Chegou à nova moradia sem uma única bagagem. Levou apenas um grande baú aveludado. Questionado sobre a ausência de roupas e pertences, respondia prontamente que tudo que precisava estava contido em seu baú. Em alguns entardeceres era flagrado conversando com seu objeto inseparável. Às vezes ele retirava de seu interior, pedaços de pano, aparelhinhos peculiares e bonecos dobráveis com os quais dançava e bailava por horas ininterruptas, ouvindo canções inaudíveis para pessoas comuns, que não tiveram uma história circense .
No início, instalou-se no melhor quarto de hóspedes daquela casa. Arrumaram com um capricho formidável, reservando a alcova principal ao mais ilustre visitante da família, na esperança que se integrasse à dinâmica e aos hábitos da casa. Mas com o passar do tempo, a presença do avô provocou incômodos incalculáveis. Suas exuberâncias eram visíveis demais, causando estranhezas nos convidados e amigos da família. Gradativamente, foi migrando para lugares mais distantes no interior da casa, instalando-se definitivamente num quartinho humilde destinado a governantas e secretárias. Como nunca foram adeptos de muitas mordomias, nem tinham condições financeiras que permitissem tais regalias, o quartinho esteve sempre desocupado.
Mas o avô quase não permanecia naquele quarto. Ele passava o dia inteiro no porão, mergulhado em seu sombrio e particular universo de fantasias. Apresentava espetáculos, executava números, exercia fascínio em platéias imaginárias. Por acreditarem que seu avô estava enlouquecendo, os pais do menino não gostavam que ele chegasse muito perto do avô, temendo que o menino se contaminasse com aquelas fábulas grotescas que o avô diariamente se entregava, em monólogos, na escuridão do porão.
Só ouvia os sussurros e um esquisito vozerio que escapavam das profundezas daquele porão proibido. Parecia que o avô falava com estranhas criaturas e que recebia respostas com gemidos e murmúrios guturais. Um dia, sabe-se lá por qual explicação, notando a presença do neto escondido, debruçado sobre a porta trancada que dava para a escadaria do porão, tentando ouvir os sons que vinham de lá de baixo, o avô subiu, destrancou a porta, segurou o menino no colo, levou-o ao seu quartinho e lhe perguntou se queria assistir a um inesquecível espetáculo de circo.
Desde aquele dia, a extensa platéia imaginária para a qual apresentava seus incríveis números, materializou-se na multiplicidade de fantasias que brotava na cabecinha de seu neto. Toda a magia da vida daquele velho homem fora transmitida com empolgação, e recebida com não menos entusiasmo por aquela criança apaixonada por estórias fantásticas. O menino havia herdado a capacidade imaginativa de seu avô, um verdadeiro contador de estórias estava se formando pela habilidade de encantar de um velho artista de circo.
Após a morte de seu avô, e por todo aquele ambiente pesaroso que veio à tona pelo remorso e pela perda de um ente querido, com a despedida daquele velho corpo que se distanciava num caixote de madeira para o fundo da terra - sua nova moradia ainda mais apertada do que o quartinho de empregada desocupado - como que por um passe de mágica, a memória que o menino tinha sobre o baú encantado se perdeu, sendo enterrada junto ao avô.
O porão também ficou abandonado, pois virou um local de tabu pelos pais do menino. Eles entenderam que aquele espaço adotado pelo avô deveria ser mantido como sagrado, santuário que representava uma espécie de mausoléu de todas as fantasias que vestiu e das peças que ali foram delirante e alegremente encenadas para compor suas personagens.
Durante muito tempo o menino esteve planejando penetrar naquele santuário ao qual tanto se identificava, buscando compreender aqueles insistentes chamados que ouvia, vindos diretamente do porão. Um misto de atração e repulsa o dominava, sobressaindo sempre a primeira, a atração. Foi quando já em presença do baú de seu avô, mais exatamente dentro dele, que pôde se recordar daqueles momentos especiais que passava sentado no colo de seu avô, no quartinho apertado mas amoroso, ouvindo fábulas, lendas e misteriosas epopéias.
O menino ficou lá, absorto pelas encenações que se desenrolaram à sua frente. Não sentiu o tempo passar. Adormeceu. Nessa ocasião, ele se viu na pele de um dos atores circenses, fabricantes de sonhos. Estava empenhado em realizar incríveis números de ilusionismo em pleno picadeiro. Quando olhou para o lado, notou que um dos palhaços dando cambalhotas divertidas era o autor daquelas estórias que marcaram seus melhores anos, seu avô. Pegou-o no colo até suspender seu neto nos ombros. Segurou suas mãos, erguendo-as bem alto. O picadeiro em peso estava comemorando um dia especial. A platéia aplaudia emocionada.
Quando o dia amanheceu, o menino acordou entre seus pais. Assustado por estar naquela posição e com medo de ser interrogado por estar ali, rapidamente se certificou que ainda dormiam, saltou da cama em silêncio, e de fininho seguiu até à grande porta que dava para a escadaria do porão. Deteve-se lá por alguns instantes. Teve a ousadia de rodar a maçaneta sem cerimônias e desceu a escadaria. O baú estava encostado no canto, empoeirado e coberto por teias de aranha. Parecia que ali esteve por anos e que nunca mais fora mexido.
O menino coçou a cabeça, refletiu sobre a aventura vivida durante a noite. Mas não se lembrava daquele porão. Não era ali que esteve. Talvez nunca esteve ali. Será que aquele baú era o mesmo que foi o responsável por tê-lo lançado por inesgotáveis e fantásticos cenários? Será que se tratava do mesmo baú através do qual visitou e atuou nos palcos das fabulosas personagens da imaginação daquela privilegiada mente de seu avô? Realmente não sabia, talvez nada tenha acontecido. Sua gigantesca curiosidade havia lhe pregado uma peça.
Decepcionado pela ausência das maravilhas pelas quais supostamente passara, resolveu retornar ao andar de cima. Mas não mais voltaria ao quarto dos seus pais, pois já estava crescido e não caberia atrapalhar o sono deles como uma criança medrosa e insegura. Enquanto subia os degraus da escadaria do porão, ainda podia ouvir as gargalhadas e os falatórios que saltavam livremente daquele baú sonhador, circulavam pelo porão e chegavam, como última parada, aos ouvidos de menino crescido.
Conto escrito por Alex Azevedo Dias.

 

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