MACHU PICCHU E AS LETRAS

Ecos dos países vizinhos do Brasil chegam historicamente deturpados.

A prerrogativa é do vencedor de conflitos ideológicos e guerras que conta a história do seu ponto de vista ou dos poderosos que oprimem os feitos dos mais fracos. Por isso, pouco se comenta sobre os esforços de combate à pobreza na Venezuela, o sistema de saúde pública exemplar em Cuba, o modelo de Estado plurinacional na Bolívia ou o passado glorioso do Paraguai como potência sul-americana.

Ainda bem que dispomos das ferramentas da internet. Infelizmente o ego tupinica de ter sido enquadrado por economistas estrangeiros na categoria dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) ou de ter o presidente “pop star” que conquistou a vinda da Copa e da Olimpíada turva a nossa esperança de entender o mundo hispano-americano por mais que Lula reforce a integração entre os povos da região como poucos outros governantes fizeram neste país.

Num desses fenômenos de filtração mediática, falou-se do número de brasileiros que estiveram envolvidos nas inundações e deslizamentos de terra no Peru. A culpa ultimamente tem sido da natureza. Para que conste: houve um desastre natural que isolou peruanos e estrangeiros na região do rio Urubamba, Machu Picchu e Aguas Calientes, que é a porta de entrada ao sítio arqueológico.

Na imprensa da Argentina, o foco foram os argentinos que estiveram na região. Na Espanha, foram os espanhóis. As cifras alcançam maior exatidão quando se referem aos estrangeiros, portanto quase não se falou dos milhares de nativos que sofreram prejuízos com as chuvas.
Houve perdas em cultivos, sistemas de irrigação, pontes, moradias, rodovias e trilhos. Cenários de desolação tomaram conta das comunidades locais, mas este não foi o foco.

Os deslizamentos de terra e o transbordamento do rio Vilcanota inviabilizaram o acesso por trem a Machu Picchu, que é uma das Sete Maravilhas do mundo. Trata-se de uma estrutura da extinta civilização inca nos Andes que foi construída no século XV, é um dos principais destinos turísticos no Peru e o acesso já era limitado. Os incas tiveram o centro em Cusco, apesar de seu império ter se estendido desde o que hoje é Colômbia ao Chile. O turismo é fonte de renda importante para o Peru.

Nunca tarda para que algum país da América Latina hospede desastres humanos e naturais. Como se não bastasse o desmanche da nação haitiana, que virou palco de experimentos internacionais, o Peru suporta o açoite das chuvas e a sofreguidão de parcela da ação humanitária.

Helicópteros fizeram o resgate de centenas de pessoas que se isolaram no destino turístico, porém houve críticas de que os nativos estiveram em segundo plano como se a chuva não os houvesse afetado, os preços aumentaram para os turistas devido à falta de água, alimento e acomodação, além de que alguns turistas endinheirados pagaram aos serviços de resgate para que tivessem prioridade.

Num país tão castigado pelos conflitos étnicos e pelo surrupiamento dos recursos humanos e naturais promovido pelo neoliberalismo, como no governo de Alberto Fujimori e a assinatura de tratados comerciais bilaterais com Pangérica(1) através do presidente Alan García, os rendimentos turísticos fazem a vida de muitos peruanos e o setor, portanto, não pode ficar desamparado.

As imagens que viajam pelo mundo, contudo, nem sempre expõem a solidariedade de seu povo e a beleza desse país andino. O relato de um visitante estrangeiro dizia que os nativos davam muito do pouco que tinham para acolher os afetados pelas intempéries. Princípio da caridade. Noutros episódios, é comum que se dê pouco do muito que se tem.

Mal se comentou sobre o conteúdo diplomático implícito nas ações governamentais de resgate. A retirada de estrangeiros dignifica a imagem externa do Peru e sua credibilidade mundial como destino turístico muito mais do que investir no bem-estar dos nativos. Triste realidade.

Enquanto isso por aqui, fala-se de “risco Brasil”, “marca Brasil”, entre outras invenções do universo das imagens que nos acreditam para investidores internacionais.

Dependendo do assunto que abordo, rememoro os dizeres de uma amiga escritora experiente no campo das letras de que já passou seu tempo de escrever artigos de fundo, reflexivos e sérios. Não que ela haja perdido a crença e a esperança senão a paciência de opinar sobre estes assuntos, muitos dos quais recorrentes. Passou a dedicar-se a crônicas do cotidiano, poesias e outras aventuras da arte.

Preferiria abordar Machu Picchu se já estivesse nesse estágio de desenvolvimento literário. Quem sabe um dia. É o mínimo que merece esta preciosidade arqueológica.

 
(1)   De agora em diante, “Pangérica” passa a ser a designação depreciativa que atribuo aos que usam pretensiosamente a expressão “América” para se referir somente aos Estados Unidos num exercício de mescla com “Pangéia” em relação à teoria de deriva continental que sustenta que o mundo era um único continente 200 milhões de anos atrás. Os Estados Unidos têm pretensão de domínio mundial, promovem invasões e golpes militares em outros países soberanos para sustentar seus interesses, e vendem um modelo de desenvolvimento impiedoso e ultrapassado.
 
Bruno Peron Loureiro é mestre em Estudos Latino-americanos por Filos/ UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México).



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