Pinochet
e seus carrascos: semelhança não é mera coincidência
"A terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos [vide aqui meu artigo a respeito], que se propõe a criar uma comissão especial para revogar a Lei de Anistia de 1979, provocou uma crise militar na véspera do Natal e levou o ministro da Defesa, Nelson Jobim, a escrever uma carta de demissão e a procurar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 22, na Base Aérea de Brasília, para entregar o cargo.
"Solidários a Jobim, os três comandantes das Forças
Armadas (Exército, Aeronáutica e Marinha) decidiram que também
deixariam os cargos, se a saída de Jobim fosse consumada.
"Na avaliação dos militares e do próprio ministro Jobim,
o PNDH-3, proposto pelo ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi,
e lançado no dia 21 passado, tem trechos "revanchistas e provocativos".
"Ao final de três dias de tensão, o presidente da República
e o ministro da Defesa fizeram um acordo político: não se reescreve
o texto do programa, mas as propostas de lei a enviar ao Congresso não
afrontarão as Forças Armadas e, se for preciso, a base partidária
governista será mobilizada para não aprovar textos de caráter
revanchista.
"Os comandantes militares transformaram Jobim em fiador desse acordo, mas
disseram que a manutenção da Lei de Anistia é 'ponto de
honra'. As Forças Armadas tratam com 'naturalidade institucional' o fato
de os benefícios da lei e sua amplitude estarem hoje sob análise
do Supremo Tribunal Federal (STF) - isso é decorrente de um processo legal
aberto na Justiça Federal de São Paulo contra os ex-coronéis
e torturadores Carlos Alberto Brilhante Ustra e Aldir dos Santos Maciel, este
já falecido.
"Além da proposta para revogar a Lei de Anistia, que está na
diretriz que fala em acabar com 'as leis remanescentes do período 1964-1985
que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos', outro ponto
irritou os militares e, em especial, o ministro Jobim.
"Ele reclamou com Lula da quebra do 'acordo tácito' para que os textos
do PNDH-3 citassem as Forças Armadas e os movimentos civis da esquerda
armada de oposição ao regime militar como alvos de possíveis
processos 'para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas
no contexto da repressão política no período 1964-1985'.
"Jobim foi surpreendido com um texto sem referências aos grupos da
esquerda armada. Os militares dizem que se essas investigações
vão ficar a cargo de uma Comissão da Verdade, então todos
os fatos referentes ao regime militar devem ser investigados.
"'Se querem por coronel e general no banco dos réus, então
também vamos botar a Dilma e o Franklin Martins', disse um general da
ativa ao Estado, referindo-se à ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff,
e ao ministro de Comunicação de Governo, que participaram da luta
armada.
"Os militares também consideram 'picuinha' e 'provocação'
as propostas do ministro Vannuchi incluírem a ideia de uma lei 'proibindo
que logradouros, atos e próprios nacionais e prédios públicos
recebam nomes de pessoas que praticaram crimes de lesa-humanidade'.
"...Lula rejeitou a entrega da carta de demissão e disse que contornaria
politicamente o problema. Pediu que o ministro garantisse aos comandantes militares
que o Planalto não seria porta-voz de medidas que revogassem a Lei de
Anistia.
"Os militares acataram a decisão, mas reclamaram com Jobim da posição
'vacilante' do Planalto e do 'ambiente de constantes provocações'
criado pela secretaria de Vannuchi e o ministro Tarso Genro (Justiça).
Incomodaram-se também com o que avaliaram como 'empenho eleitoral excessivo'
da ministra Dilma no apoio a Vannuchi."
VALE REPETIR: DEMOCRACIAS
NÃO ACEITAM ULTIMATOS
De resto, é até ocioso comentar essas imposições
arrogantes dos comandantes militares, que, aliás, não passam
do mais ridículo blefe.
Eu já o fiz em setembro de 2007, quando o Alto Comando do Exército,
por motivos semelhantes, emitiu um papelucho que nenhuma democracia poderia
engolir, mas Lula, ao invés de demitir imediatamente os insubordinados,
cedeu à chantagem.
Só para lembrar, eis alguns trechos do artigo que lancei na ocasião, Democracias
não aceitam ultimatos :
"A nota oficial lançada pelo Alto Comando do Exército na última
sexta-feira (31) é inaceitável para qualquer democracia, pois
coloca essa Arma acima dos três Poderes da Nação (...)
(e) representa uma quebra de autoridade, já que desautoriza o ministro
da Defesa, e coloca em dúvida (...) o acerto das iniciativas do estado
brasileiro para reparar as atrocidades cometidas durante os anos de chumbo.
"Não, esses fatos históricos têm uma interpretação
unânime por parte dos historiadores eminentes e uma interpretação única
do estado brasileiro. Ao Exército cabe aceitá-la e não contestá-la...
"Modificar ou não qualquer lei é uma decisão que, numa
democracia, cabe aos Poderes da Nação e não precisa ter
a anuência do Exército.
"Para que haja uma verdadeira reconciliação nacional, não
a imposição da paz dos vencedores sobre os vencidos, é imperativo
que as Forças Armadas brasileiras reconheçam que o período
1964/1985 não passou de uma aberração, assim como o nazismo
na Alemanha e o fascismo na Itália. Suas congêneres desses países
renegam o período em que, submetidas ao comando de forças totalitárias,
atentaram contra os direitos dos povos e dos cidadãos.
"É hora do Exército brasileiro fazer o mesmo, voltando realmente
a ser o Exército de Caxias. Até lá, haverá sempre
a suspeita de que se trate do Exército de Brilhante Ustra – aquele antigo
comandante do DOI-Codi que, na frase imortal do ex-ministro da Justiça
José Carlos Dias, 'emporcalhou com o sangue de suas vítimas a farda
que devera honrar'.
Tudo que havia para se dizer, eu já disse há mais de dois anos.
A nova crise é uma reprise daquela que foi tão malresolvida em
2007.
Só mudou mesmo a posição de Jobim, que se dispunha a submeter
os militares à autoridade democrática e, humilhado pelo recuo
de Lula, percebeu de que lado estava a força: desde então, submete-se
ele próprio às imposições da caserna e se faz porta-voz
de suas ameaças grosseiras.
É TOTALMENTE INACEITÁVEL QUE OS MILITARES INSISTAM
ATÉ HOJE EM IGUALAR CARRASCOS E VÍTIMAS, NA CONTRAMÃO
DE TODO DIREITO CIVILIZADO, DAS DETERMINAÇÕES DA ONU E DO MILENAR
DIREITO DE RESISTÊNCIA À TIRANIA.
QUEM FAZ UMA EXIGÊNCIA DESSAS, EXCLUI-SE AUTOMATICAMENTE DA
DEMOCRACIA E DE GOVERNOS DEMOCRÁTICOS. FALTOU APENAS A DECISÃO
PRESIDENCIAL NESTE SENTIDO.
Encerro com um apelo ao Exmo. Sr. Presidente da República: não
repita o trágico erro de João Goulart!
Jango assumiu o poder em função da resistência do povo
e dos escalões inferiores das Forças Armadas, que abortaram o
golpe de Estado em curso. Nem sequer precisaria ter aceitado o casuísmo
parlamentarista, pois os conspiradores já estavam derrotados.
E, mesmo quando o povo lhe concedeu a Presidência plena, não tomou
nenhuma atitude contra o núcleo golpista. Pelo contrário, omitiu-se
quando os comandantes fascistas expurgavam as Forças Armadas, punindo
e isolando os bravos sargentos e cabos que haviam frustrado a quartelada de
1961.
Deu no que deu: o golpe tentado em 1961 foi repetido, dessa vez com êxito,
em 1964.
Então, presidente Lula, esmague o ovo da serpente enquanto é tempo!
Os totalitários não são hoje maioria nas Forças
Armadas, nem de longe. Pague para ver, que as tropas deixarão a alta
oficialidade falando sozinha.
Como comandante supremo das Forças Armadas, faça o que precisa
ser feito enquanto tem a popularidade no auge e os ultradireitistas não
ousam bater de frente com o seu carisma.
O quadro político está sempre sujeito a mudanças: adiante,
as medidas saneadoras poderão custar muito sofrimento.
* Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém os blogues
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/