George Orwell
O Brasil vive a era do escárnio. A corrupção e a violência, de tão banais, já nem despertam manchetes. Tampouco indignação. Esse sentimento ficou relegado aos simplórios e idiotas...
O senador Jarbas Vasconcellos dá uma entrevista bombástica, neste final de semana, dizendo o que todo mundo sabe: que o PMDB é corrupto. Lógico, o resultado: os corruptos do partido irão puni-lo e, com certeza, vencerão, porque são maioria lá dentro. O partido das diretas-Já e do doutor Ulysses, que se tornou apenas um retrato na parede (e como dói...), virou o partido da corrupção, do comércio dos cargos e do escarro das licitações fraudulentas em troca de apoio ao governo. A estrutura do Executivo, dirigida pelo coronel Lula e seus seguidores sindicalistas, procura agora, à luz do dia e sem nenhuma preocupação com os pruridos formais da Justiça Eleitoral, montar um simulacro de sucessão presidencial, evitando, assim, que a sociedade, na ociosidade do que fazer, cobre alguma coisa sobre outros assuntos mais espinhosos. E até já escolheu os adversários convenientes, os dois governadores do PSDB, para fingir, um ano antes, uma disputa que só interessa aos dois partidos. Como se nada mais existisse no país, que não eles...
Esse jogo antecipado, decerto combinado com o adversário, surte algum efeito, mas as consciências despertas sabem que não é bem assim.
Os petistas, mesmo os mais ligados ao presidente e acostumados com a vigente repartição do butim, estão ressabiados. A sanha fisiológica do PMDB é tanta, seu apetite voraz tão aberto, que a carniça chamada Brasil talvez não sobre para todos os apetites.
Nunca aquela velha frase do deputado udenista Tenório Cavalcanti esteve tão atual: "só existem dois grupos em verdadeira luta no Brasil, os que estão roubando e os que querem roubar..."
Mesmo o Judiciário está aprontando: os ministros do Supremo querem aumento – afinal a crise machuca a todos – sabendo no íntimo que o presidente lhes dará tudo o que pedirem. Também, na situação em que o país está, basta puxar com coragem um fiapo que cai a tenda toda. Mesmo de pé, o cheiro é quase insuportável e até o sr. Marcos Valério anda recebendo ameaças de morte...
A manobra dos fome-zeros, bolsas-famílias e PAC's tornou-se tão manjada que até os professores universitários, desses que rejeitam nas salas de aula qualquer teoria da conspiração, já estão achando que o governo faz isso para garantir os votos do esculacho...
Ou seja, eles poderiam, inclusive, discutir uma nova tese sobre o presidente. Seria assim: Lula é "geográfico". Veio do Nordeste num pau-de-arara (ou de navio, como queiram) e retornou a ele, vitorioso, com vinhos franceses e cigarrilhas holandesas. Com o título: "De metalúrgico a Coronel". Tudo aquilo que no Brasil, desde Gilberto Freyre, fora produzido em vasta literatura sobre o coronelismo está praticamente superado, em matéria de ousadia. E só poderia ser explicado hoje por Lombroso e Nietzsche, de um lado, e, de outro, por Freud e Lacan.
E o Brasil, como esgoto a céu aberto, aclama quase que por unanimidade, o seu coronel! Ele controla o Executivo, com mão-de-ferro, o Legislativo, meio em tom blasé, como se fosse obrigação engolir medidas provisórias e demonstrar a todos o que é um poder agachado e o Judiciário, entupindo-o de benesses e mordomias, quando provocado.
O povo continua faminto, ou vivendo como "deus-qué-né-memo", mas não destrata o coroné que lhe dá tantas migalhinhas. Essa será a tônica da campanha: assistencialismo e PAC, nada mais. Parece que no Brasil não há o que fazer. Com esses dois esquemas, garantem-se os votos e a eternidade no poder. O coroné sabe o que faz!
Todavia, nosso país não tem inimigos externos nem internos. Vive em paz, certo? Errado. Estamos presenciando uma guerra eterna, como no país imaginário de George Orwell controlado pela teletela e o Big Brother: a paz aqui é guerra permanente, do crime organizado, o de cima e o de baixo, e a violência urbana e rural. No plano externo, criamos fricções onde não existem, apenas para lembrar que o governo do coronel é soberano. Mas como exercer soberania se nossas Forças Armadas estão sucateadas na prática, submetidas apenas ao carinho teórico de projetos? A solução é resolver tudo na diplomacia do papo furado terceiro-mundista, que não ata nem desata e é motivo de riso por todo o planeta...
Mas pelo menos a liberdade de ir e vir ainda é garantida pela Constituição. Certo? É verdade, enquanto os desembargadores e juízes puderem ir livremente aos guichês bancários para sacar seus haveres teremos a sensação de Estado de Direito. Mas e "se amanhã, seu Zé, se acabarem com seu Carnaval?"
Na verdade, o povo não detém as mesmas garantias e é sonegado na educação, nos hospitais, nos transportes, nas estradas e no saneamento, sendo tangido para as periferias e não podendo realmente sair dos guetos circunscritos. Só no Rio de Janeiro são mais de 900 favelas. Para eles, sem dúvida – insisto na imagem de Orwell – a liberdade é escravidão.
Para o coronel, no entanto, exibir com alegria pela TV e o rádio uma fingida ignorância, misturada a metáforas rigorosamente produzidas para seduzir os maltrapilhas que detêm a maioria dos votos – eis a fórmula final do exercício da força, pela legitimidade psicanalítica de convencimento das massas, que querem ver o estado d'alma refletido em seu dirigente. Se a ignorância conduz à popularidade, ignorância é força. É ardil e simulacro.
Nesse estado de tosca estabilidade falar em corrupção é a mesma coisa que discursar sobre corda em casa de enforcado. Um discurso vazio, quando as favas estão aparentemente contadas e o candidato sendo gestado.
Ideal para o coronel, que manda com mão-de-ferro e tem uma candidata sem mandato nas mãos. Ela mantém o sabor de vitória para ele, porque é uma geringonça toda construída pela cabeça do coronel, uma funcionária demissível ad nutum e que jamais disputou eleição, não tendo participado de qualquer "test-driver" eleitoral. É uma obediente vassala do chefe, que se exibe, demonstrando a todos que o que prevalece é a vontade de poder coronelista sobre tudo o mais. A ponto de gerar uma falsa líder em laboratório que, ao contrário das outras mulheres políticas, depende completamente do homem. Nem feminista é, porque não tem luz própria, é Lula própria...
O lado esquerdo do PT, mais ressabiado que o lado direito antes descrito, sente, sem dúvida, um cheiro muito ruim pelo ar. A coisa foi longe demais e não tem retorno – sentem os petistas quase puros, com a língua emudecida. Essa aventura neocoronelista, com o culto à personalidade dos regimes totalitários, chegou a um ponto tal que começa a exigir uma espécie de comlurb para nossos costumes políticos. Como diria Tomás de Aquino, um erro pequeno se tornou grande, afinal...
Para quem tem estômago, o Brasil pode ser aceito assim como está. Não tem mais jeito. O coronel manda mesmo e obedece quem tem juízo. Ao contrário das eleições municipais, ele aposta as fichas na sucessora, como um poste, somente para demonstrar poder e se tornar eminência parda fora dele. Tais cálculos são feitos com antecipação, porque todos percebem um jeito de governo que já acabou, cujo enredo foi posto na mesa e nem pode ser modificado.
De acordo com o que disse do alto de seus dois mandatos como governador, o senador Jarbas Vasconcellos chamou o governo Lula de "medíocre", sustentado por um partido corrupto. Diria até que foi condescendente. O governo Lula possui outros adjetivos mais baixos e podres. E para a sua continuidade, como não poderia deixar de ser, o presidente convoca um personagem híbrido e de passado nebuloso: uma mulher, capaz de ser amada pelo povo, como o Grande Irmão de Orwell, desde que em nome do fabuloso coronel. "Nunca nezte paiz"...
* Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e acha que a solução para o povo é brincar o Carnaval.