BAR, PANFLETOS, CHORO E PRAIA!

– não necessariamente nessa ordem...

O bar do meu tio. Se você continuar lendo as minhas colunas, ou se não colocarem veneno na minha cerveja, com certeza você ainda ouvirá falar muito dele. Trata-se do Bar Garibaldi, localizado na Avenida Venâncio Aires, em frente à Praça Garibaldi, na Cidade Baixa em Porto Alegre. O nome do meu tio: Nebusaradan Ritter, mais conhecidos por nós, sobrinhos, como Tio Dãe, e pelos clientes e pessoal das redondezas simplesmente como Ritter. 

- Ô alemão xarope!
O tio nada.
- Ô alemão xarope, me vê uma cachaça.
O tio nada. O senhor de pele negra, aparentando cerca de 80 anos, insiste:
- Ô alemão xarope. Pára de se faze de surdo.
O senhor me olha, com os olhos revirados, e o tio fica ali, com a testa franzida, como se nada estivesse acontecendo.
- Esse aqui – me diz o bêbado, apontando para o meu tio – é alemão. O sobrenome dele é Ritter. É um baita dum alemão xarope. Não é bom confiar nele. Não dá para confiar em alemão.
O tio escuta tudo e diz, apontando para mim com a cabeça:
- Esse ai também é alemão. Pergunta o sobroneme dele?
O bêbado me olha desconfiado, cambaleia para um lado, para o outro, ergue o dedo indicador e diz:
- Não é nada! Esse guri é gente fina – depois volta-se para mim de novo e resmunga no meu ouvido, soltando algumas gotas de cuspe – esse cara é alemão. Não confie nele – então ,volta-se para o meu tio novamente e diz: Ô ALEMÃO XAROPE! ME VÊ UMA CACHAÇA.
O tio me olha e balança a cabeça, com uma cara de quem não tem nenhuma paciência, mas que ao mesmo tempo está cansado de bater em bêbado e também não tem mais saco para ficar brigando.
- Cadê o dinheiro? – pergunta o tio.
- Anota aí! – retruca o bêbado.
O tio nem se meche. O bêbado olha pra ele, olha pra mim, fica uns dois minutos revirando o bolso até tirar uma nota de um real completamente amassada:
- Ô alemão xarope! Me vê uma cachaça! – e coloca o “pila” em cima do balcão.
O tio, com calma indiana, pega o que sobrou da nota de um real, guarda, vai até a prateleira que tem todos os tipos de bebidas, pega uma garrafa e serve uma dose.
- Esse alemão xarope é gente fina – diz o bêbado – tu não é alemão né? –questiona.
- Eu sou sobrinho dele. Também sou Ritter – digo, com toda a seriedade do mundo. O bêbado começa a rir como uma criança. E recomeça a mesma ladainha:
- Não confia nesse alemão xarope. Você não é alemão, não é?
Se eu quisesse, poderia ficar a noite inteira com a mesma conversa. E o pior é que essa cena se repete todos os dias. O tio só olha, com a testa franzida, e vai tomando uma cerveja para não ficar maluco. Ele não se impressiona com nada. Bukowski se sentiria em casa no bar do meu tio.

A primeira que vez que fui lá foi em 1996. Tinha 15 anos, viajei para Porto Alegre para assistir o Grêmio de Felipão contra o Palmeiras de Luisão, Djalminha e cia no Olímpico pelo Campeonato Brasileiro. Ia posar duas noites lá no bar do tio. Nunca tinha ido no boteco – no Olímpico já, num Grêmio 2x3 Botafogo em 95, com dois gols do Túlio Maravilha. Cheguei em Porto Alegre, fomos no jogo, estádio Olímpico completamente lotado, 1 a 1, gol do Viola para o Palmeiras e do Paulo Nunes para o Grêmio (28 de outubro de 96). Saímos do jogo, primeira noite posando no bar do tio, barulho de carro, vozes, buzinas na avenida, risos, copos, garrafas, gargalhadas, gritos, berros e ameaças:
- Vou te matar filha da puta!
- Então vem, fiá-da-puta! Vem se tu é homem!
Coração acelerado, olhos arregalados, suor frio. “Agora vão puxar um revólver e matar todo mundo. Sobem aqui, me matam, e levam tudo. Podem ligar pra minha mãe em Santo Ângelo. ‘Alô, é da residência do sr. Eduardo Ritter? Você é o quê? Mãe dele? Escuta, tem alguém próximo da senhora? Ninguém? Olha, aconteceu um pequeno acidente aqui em Porto Alegre...´ Pronto. É apenas questão de segundos e conhecerei o outro lado. Será que existe mesmo um bar no lado direito da porta de entrada do céu? Bem, vou descobrir em breve...”. Fiquei divagando mentalmente sobre o assunto. Já estava até conformado com a dita cuja da tal da sorte, digo, da desgranida que você sabe o nome, quando meus olhos de repente foram pesando, os crápulas mentecaptos não subiam para me matar e ficavam só gritando lá embaixo, quando vê, já estavam rindo, e no final das contas acabei sonhando com a Demi Moore jogando com a camisa 10 do Grêmio e fazendo o gol do título mundial na vingança  contra o Ajax....
Na segunda noite no bar, chegou a hora de dormir, subi as escadas, deitei, e fiquei novamente com os olhos arregalados fixos no teto. Não demorou muito e começaram:
- Vou te matar, filha da puta!
- Então vem!
- Vou te matar, seu corno filho de uma cadela.
Comecei a falar de mim para mim: “não vai nada, cagão. Fica só ameaçando e não mata nem uma barata”. E é assim todos os dias.

No ano passado, fiquei morando no bar durante quatro meses. São muitos personagens, a maioria deles têm histórias tão ou mais impressionantes do que as do próprio Bukowski. Meu tio, por exemplo. Depois de tantos anos passando por todo o tipo de situação, acredita perdidamente que tem o corpo fechado. “Eu não morro mais”, diz. E completa: “se me puxarem um revólver, nem ligo. Cago de laço. Agora, se puxarem um facão, fico arrepiado. Mas vou pra peleia igual”.
Certa vez, o tio estava tranqüilo, lavando um copo, como sempre faz. De repente, sentiu um cano encostando na cintura. Não pensou duas vezes, estourou o copo na cara do infeliz, que saiu correndo e disparou contra o bar do outro lado da rua, com o rosto ensangüentado, sem acertar ninguém. Outro dia, o tio passando na rua, cruzou pelo assaltante, que aliás, sempre anda pela área, como muitas figuras dali. “Viu só, filha da puta, se eu quisesse podia te matar agora. Mas não vou sujar minhas mãos com vagabundo. Vai quieto e não faz mais merda”. Sempre que o cara passa pelo bar cumprimenta meu tio como se fosse um peão dele.
Nesse período em que passei no bar do meu tio fui obrigado a entrar no clima. Passei por muitas situações que ainda vou contar aqui. Várias delas foram no período em que entreguei panfleto de empréstimo para o pessoal aposentado do Exército. Isso mesmo que você leu. Para você que conhece ou mora em Porto Alegre, eu trabalhava ali, na João Pessoa, ou senão lá na Andradas, a umas três quadras  do Correio do Povo. Foram muitas as situações inusitadas, que ainda escreverei aqui para você, nobre leitorinho tupiniquim.
Uma delas foi na minha primeira semana de trabalho. O salário era 100 reais por semana, mais comissão (que nunca vinha) e 10 reais por dia para o almoço e o busão. Eu ia e voltava a pé pra economizar. Como tinha trabalhado dois dias, chegou na sexta-feira e tinha 40 reais para receber. Vou explicar brevemente que estava fazendo tudo isso, primeiro, porque não conseguia emprego em lugar nenhum, e segundo, para seguir fazendo meu estágio na Rádio Gaúcha, já que era um estágio voluntário, mas que foi muito importante para mim como uma ótima experiência. Pois bem, eu estava na fila, junto com meus colegas panfleteiros (galera maluca, mas gente boa), e um carinha, negro, com toda a ginga que só quem mora na favela tem, me olhou e disse com um sotaque que era mistura de porto-alegrense com carioquês:
- Aê, quantos dias tu trabalhou?
- Dois.
- Aê. Já dá quarentão aê! – ele pensou um pouco, calculando, e completou – 20 já deixa pras meninas e 20 dá pro findi.
Eu dei risada enquanto pensava em toda a minha vida: o diploma de jornalista, o dinheirão das mensalidades da faculdade, o estágio por amor a profissão na Gaúcha, o 100 na monografia, os elogios dos professores, no meu amor, que estava me matando de saudades e que também estava ralando em Santo Ângelo... Parei de rir, baixei a cabeça. Senti um aperto no peito e uma dúvida: “tudo isso vale a pena? Por que o pessoal que ganhou a faculdade paga pelo pai e pela mãe, que nunca precisou trabalhar e pouco se importa com isso é justamente quem está ocupando o lugar de quem rala, de quem corre atrás nos grandes meios? Por que o Bukowski ficou 60 anos só levando no rabo até ser reconhecido? Por que o Cafu teve que trabalhar como papeleiro e ser reprovado no Corinthians, no Palmeiras e na Portuguesa antes de entrar no São Paulo e se tornar o Cafu capitão do penta? Por que estou entregando panfleto para ganhar 20 reais por dia? Por que...? Por que...? Por que...????”. Enquanto fazia todas essas perguntas, e muitas outras, caminhava a pé pela Borges de Medeiros, rumo a Loureiro da Silva, até a José do Patrocínio, e quando via, estava chegando no bar da Venâncio. Entrava e via o Pula-Pula, o Mateus, o bêbado que chamava meu tio de Alemão Xarope, e toda aquela gente sem dinheiro e sem esperança, mas que mesmo assim virava a noite tomando cerveja e dando risada, sem nada para ganhar nem para perder e sem qualquer perspectiva de que algo de bom lhes aconteça no futuro.
Ganhava um pequeno ânimo e subia as escadas, me atirava no colchão velho colocado no meio da sala. Fechava a janela que estava aberta e que deixava a sala com temperatura abaixo de zero, colocava a cabeça entre as pernas e a única coisa que me restava a fazer era chorar e torcer para que o dia seguinte nascesse e morresse o mais breve possível, até a próxima viagem em que eu pudesse ver o meu amor e seguir sonhando com um futuro cheio de alegria, felicidade e viagens para a praia....

Pois é amigo, o futuro chegou (ele sempre chega!). E no carnaval estou indo para a praia com o meu amor!! Me despeço, entonces, com un “hasta la vista, bybes”!!!

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