Cangaceiros do castelo

Domingo, dia vinte e quatro de maio, eu caminhava na Lagoa Rodrigo de Freitas quando assisti a uma manifestação de umas quinhentas pessoas, aproximadamente. Os cartazes pediam mais segurança nas ciclovias da cidade; alguns manifestantes carregavam rodas de bicicletas amarradas com lenços brancos, sinalizando paz. A sociedade se manifesta para demonstrar sua insatisfação e indignação com os recentes crimes protagonizados por bandidos armados com facas.

O caso do médico que morreu vítima de esfaqueamento causado por um suspeito menor de idade, só faz crescer a onda da redução da maioridade penal. Sou a favor de qualquer discussão pública que traga novos rumos para possíveis soluções. Eu, particularmente, sou contra a redução, mas respeito quem pensa o contrário e concordo com algumas argumentações opostas. Mas na maioria das vezes as tendências são simplistas e carentes de aprofundamento social.

Uma das questões que eu recorro para defender minha posição sobre o tema é: O que um jovem de dezoito anos faz, que um de dezessete não pode fazer? Descendo em escala cronológica: O que um jovem de dezesseis anos faz, que um de quinze não pode fazer? Nessa escala decrescente vamos acabar prendendo “bandidos” de fraldas. Outra incoerência, ainda sobre o ECA, é dizer que as punições são brandas. As punições que ali estão, são para aqueles que, tendo seus direitos efetivamente garantidos, incorram em infração. Antes de exigir que o Estatuto seja mais rigoroso em punir, é preciso que se cobre que os direitos sejam aplicados. Redução não é a solução!

Enquanto fazia a caminhada passei por um grupo que conversava favoravelmente à redução.Ouvi uma senhora dizer que o suspeito de assassinar o médico tinha quinze passagens pela polícia, que não tinha mais recuperação, e que o Estatuto da Criança e do Adolescente precisava ser revisto. Na hora engoli minha resposta, mas respondo agora à simpática senhora, dizendo que se o suspeito teve quinze passagens pela polícia e não foi punido e nem ressocializado, a responsabilidade é nossa. Sim, nós somos responsáveis pelos legisladores que temos, pelos executivos, judiciário, pela falência de todo um sistema carcomido, que herdou a nossa passividade e permissão para que continuasse crescendo e alimentando o monstro.

Onde aquela senhora estava quando o jovem foi preso na primeira, segunda, terceira, quarta, e quinta vez? Provavelmente cuidando, e muito justamente, das coisas de seus interesses. Onde ela estava quando o jovem foi preso na sexta, sétima, oitava, nona e décima vez? Estava cuidando de seus justos negócios. Onde ela estava quando o jovem foi preso na décima primeira, décima segunda, décima terceira, décima quarta e décima quinta vez? Preocupada com suas atividades pessoais. Onde ela foi quando o jovem foi preso pela décima sexta vez? Eu já contei.

A sociedade está atrasada em relação ao que acontece a sua volta, não estica o pescoço para ver o que se passa do outro lado do muro do castelo. É pega de surpresa quando um semelhante, na escala social, é arranhado ou perfurado pela faca que está na mão do invisível, daquele com quem ninguém se importa. Tenho dúvidas se quando alguém pede revisão do ECA, se ela leu um artigo sequer, acho que não.

Quando vi aquele grupo de pessoas bem sucedidas reunidas para lamentar o leite derramado, quis muito que elas se envolvessem para que o Estatuto da Criança e do Adolescente fosse aplicado, que discutissem seus artigos e leis para que suas conquistas deixassem de ser somente literatura, mas preferem continuar encasteladas como se existissem duas cidades, a deles e a dos outros.

Um senhor passou pedalando uma bicicleta mais cara que o meu carro, gritando que passaria a sair de casa armado de faca. Não duvido que isso aconteça e que o Rio vire o próprio cangaço, com essa parcela da população armada de peixeira na cintura para defender suas ciclovias, suas calçadas, suas praias, seus parques, seus estacionamentos, suas escolas, suas clínicas, seus aeroportos, seus shoppings, suas ruas, do “bando” que ataca, saqueia e leva medo aos “cegos do castelo”.

Ricardo Mezavila é escritor
autor de “As conversas que tivemos ontem
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