Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade está propondo o fim das Polícias Militares em todo o País, uma vez que "a atribuição de caráter militar às polícias militares estaduais, bem como sua vinculação às Forças Armadas, emanou de legislação da ditadura militar", anomalia que perdura até hoje, "fazendo com que não só não haja a unificação das forças de segurança estaduais, mas que parte delas ainda funcione a partir desses atributos militares".
Vale lembrarmos que, em junho de 2012, o Alto Comissariado de Direitos Humanos das Nações Unidas igualmente recomendou a extinção das ditas cujas, em função não só de seu altíssimo índice de letalidade, mas também do fato de que parte expressiva de tais óbitos se devia a "execuções extrajudiciais".
Após analisar 11 mil casos de alegadas resistências seguidas de morte, a ONU constatou o que por aqui todos estávamos carecas de saber desde 1992, quando Caco Barcellos lançou seu primoroso livro-reportagem Rota 66 - A história da polícia que mata: frequentemente não houvera resistência nenhuma mas, tão somente, assassinatos a sangue frio de suspeitos já rendidos.
Para piorar, as autoridades brasileiras quase sempre acobertavam os homicídios desnecessários e covardes perpetrados pelos PMs.
Na reunião da ONU em que se discutiu o assunto, coube à Coreia do Sul dar nome aos bois, equiparando tais episódios aos crimes outrora cometidos pelos nefandos esquadrões da morte (aqueles bandos de policiais exterminadores que, durante a ditadura militar, trombeteavam triunfalmente seus feitos e agora atuam com alguma discrição, mas continuam existindo, sim, senhor!).
"TREINAMENTO CRUEL E HUMILHANTE"
A recomendação da CNV vem ao encontro da proposta de emenda constitucional (PEC 51/2013), que está tramitando no Congresso Nacional. Ela prevê a desvinculação entre a polícia e as Forças Armadas; a efetivação da carreira única, com a integração entre delegados, agentes, polícia ostensiva, preventiva e investigativa; e a criação de um projeto único de polícia.
Marcelo Freixo, professor de História e deputado estadual pelo PSOL (RJ), é um dos grandes defensores da PEC 51/2013. Ele lembra, inclusive, que o treinamento imposto pela PM --rigoroso a ponto de justificar a comparação com sessões de tortura-- já causou a morte de soldados.
O caso mais chocante aconteceu no Rio de Janeiro, em novembro/2013, quando um integrante da 5ª Companhia Alfa da PM morreu, outros 33 recrutas passaram mal e 24 sofreram queimaduras nas mãos ou nas nádegas (quem não suportava os exercícios era obrigado a sentar-se no asfalto escaldante).
Os oficiais não lhes davam sequer tempo para se hidratarem, então alguns beberam a água suja destinada aos cavalos. A enfermaria da unidade revelou que alunos chegaram a urinar e vomitar sangue.
O secretário estadual de Segurança José Mariano Beltrame, então classificou a morte do recruta Paulo Aparecido Santos de Lima, de 27 anos, como homicídio.
Uma pertinente indagação de Freixo:
"Como esses soldados, submetidos a um treinamento cruel e humilhante, se comportarão quando estiverem patrulhando as ruas e atuando na pacificação das comunidades?"
E uma constatação também pertinente (eu diria até irrefutável....):
"Em todos os Estados do país, a PM é concebida sob a mesma lógica militarista e antidemocrática. (...) Em vez de se preocupar em formar soldados para a guerra, para o enfrentamento e a manutenção da ordem de forma truculenta, o Estado precisa garantir que esses profissionais atuem de forma a fortalecer a democracia e os direitos civis. A realização dessa missão passa necessariamente por mudanças na essência do braço repressor do poder público".
ENTULHO AUTORITÁRIO
Tal mostrengo, como reiterou a CNV, existe por obra e graça da ditadura de 1964/85, só sobrevivendo a ela em função da pusilanimidade dos governantes civis a quem cabia eliminar o entulho autoritário.
Na sua trajetória para concentrarem poder na segunda metade da década de 1960, os militares encontraram alguma resistência por parte dos governadores civis que ajudaram a dar o golpe mas depois viram, com óbvio desagrado, esfumarem-se suas ambições presidenciais. Precavidos, os fardados resolveram assegurar-se de que os paisanos não contariam com tropas a eles leais.
O governador Adhemar de Barros, p. ex., até o último momento acreditou que a Força Pública impediria a cassação do seu mandato (tiraram-no do caminho acusando-o de corrupto -o que ele sempre foi- mas, na verdade, porque não se conformava com o monopólio castrense do poder).
Então, nas Constituições impostas de 1967 e 1969, a ditadura fez constar da forma mais incisiva que "as polícias militares (...) e os corpos de bombeiros militares são considerados forças auxiliares, reserva do Exército".
Na prática, seus comandos foram se subordinando cada vez mais aos das Forças Armadas; e as lições de tortura aprendidas de instrutores estadunidenses e aprimoradas nos DOI-Codi's da vida foram ciosamente repassadas aos novos pupilos. Daí a tortura ter continuado a grassar solta, longe dos holofotes, depois da redemocratização do País, só mudando o perfil das vítimas (passaram a ser os presos comuns).
Além disto, a ditadura estimulou a absorção da civilizada Guarda Civil de São Paulo pela truculenta Força Pública (que atuava como tropa de choque em conflitos), sob a denominação de Polícia Militar. Vale notar que o decreto-lei neste sentido, o de nº 217, é de 08/04/1970, bem no auge do terrorismo de estado no Brasil.
Não é à toa que, até 2011, a unidade mais violenta da PM paulista (a Rota) mantinha no seu site rasgados elogios ao papel que a corporação havia desempenhado na derrubada do presidente legítimo João Goulart, só os deletando sob vara da então ministra dos Direitos Humanos Maria do Rosário.
Por Celso Lungaretti, no seu blogue.