Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções (cap 1)

Capítulo I
Continuação da Introdução

Os atrativos da igualdade não são explicados pelo significado literal. Vivendo num estado autocrático ou oligárquico, talvez sonhemos com uma sociedade em que o poder seja compartilhado, e todos tenham parcelas exatamente iguais. Mas sabemos que a igualdade desse tipo não sobrevive à primeira assembleia dos novos membros. Elegerão um presidente, alguém que terá um discurso forte e nos convencerá a seguir suas ordens. No fim das contas, começaremos a classificar uns aos outros – é para isso que existem assembleias. Vivendo num Estado capitalista, talvez sonhemos com uma sociedade em que todos tenham o mesmo capital. Mas sabemos que o dinheiro igualmente distribuído ao meio-dia do domingo terá sido desigualmente redistribuído antes do fim da semana. Algumas pessoas pouparão, outras investirão e outras ainda gastarão (e o farão de diversas maneiras). O dinheiro existe para viabilizar todas essas atividades; e, se não existisse, o escambo de bens materiais levaria, só que um pouco mais devagar, aos mesmos resultados. Vivendo num Estado feudal, talvez sonhemos com uma sociedade em que todos os membros sejam igualmente honrados e respeitados. Porém, embora possamos dar a todos o mesmo título, sabemos que é impossível recusar-se a reconhecer – na verdade, queremos ser capazes de reconhecer – os tantos tipos e graus de habilidades, força, sabedoria, coragem, bondade, energia e elegância que distinguem um indivíduo do outro.

Da obra de Michael Walzer “Esferas da Justiça: Uma defesa do pluralismo e da igualdade” (tradução de Jussara Simões. Martins Fontes: São Paulo, 2003), percebemos que a raiz do significado da igualdade é negativa; o igualitarismo, em sua origem, é uma política abolicionista. Não pretende eliminar todas as diferenças, mas determinado conjunto delas, e um conjunto diferente em cada época e lugar. Seus alvos são sempre específicos: privilégios, riqueza capitalista, poder burocrático, supremacia racial ou sexual. Em todos esses casos, porém, as lutas se assemelham um pouco. O que está em jogo é a capacidade de um grupo de pessoas dominar seus semelhantes. Não é o fato de existirem ricos e pobres que gera a política igualitária, mas o fato de que os ricos “oprimem os pobres”, impõem-lhes sua pobreza, exigem-lhes comportamento respeitoso. De maneira semelhante, não é a existência de aristocratas e plebeus, ou de autoridades e cidadãos comuns (e decerto, não é a existência popular de abolição das diferenças sociais e políticas; é o que os aristocratas fazem aos plebeus; o que as autoridades fazem aos cidadãos comuns; o que as pessoas que tem podem fazem aos que não tem.

O que precisa ser feito para que as injustiças mais evidentes do mundo contemporâneo sejam eliminadas ou, ao menos, atenuadas? Nas sociedades democráticas, as instituições do Estado trabalham pela aplicação equânime das leis ou são meros instrumentos de uma burocracia autorreferente? Partindo do ordenamento jurídico em vigor – que negligencia a realidade concreta dos cidadãos para privilegiar a formulação de arranjos institucionais -, que caminhos podem levar à construção de um planeta mais inclusivo e menos iníquo?

Já na obra “A Ideia de Justiça”, de Amartya Sen (tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. Companhia das Letras: São Paulo, 2012), o que nos move, com muita sensatez, não é a compreensão de que o mundo é privado de uma justiça completa – coisa que poucos de nós esperamos -, mas a de que a nossa volta existem injustiças claramente remediáveis que queremos eliminar.

Isso é bem evidente em nossa vida diária, com as iniquidades ou sujeições que podemos sofrer e das quais temos boas razões para nos ressentir, mas também se aplica aos diagnósticos mais generalizados de injustiças no vasto mundo em que vivemos. É correto pressupor que os parisienses não teriam tomado de assalto a Bastilha, que Gandhi não teria desafiado o império onde o sol costumava não se pôr, que Martin Luther King não teria combatido a supremacia branca na “terra dos homens livres e lar dos bravos”, não fosse seu senso das injustiças manifestas que poderiam ser vencidas. Eles não estavam tentando alcançar um mundo perfeitamente justo (mesmo que não houvesse nenhum acordo sobre como seria tal mundo), mas o que queriam era remover claras injustiças até onde pudessem.
Compreender o mundo nunca é uma questão de apenas registrar nossas percepções imediatas. A compreensão inevitavelmente envolve o uso da razão. Temos de “ler” o que sentimos e aparentemente vemos, e perguntar o que essas percepções indicam e como podemos levá-las em conta sem sermos sobrecarregados por elas. Uma questão diz respeito à confiabilidade de nossas percepções e impressões. Um senso de justiça poderia servir como um sinal que nos move, mas um sinal ainda demanda um exame crítico, e deve haver um exame cuidadoso da validade de uma conclusão baseada principalmente em sinais. (...)

Para Amartya Sen temos de perguntar também que tipos de argumentação racional devem contar na avaliação de conceitos éticos e políticos tal como justiça e injustiça. De que forma um diagnóstico da injustiça, ou a identificação do que poderia reduzi-la ou eliminá-la, pode ser objetivo? Isso exige imparcialidade, em algum sentido específico, tal como independência de nossos interesses pelo próprio benefício? Isso também exige um reexame de algumas atitudes, mesmo que elas não estejam relacionadas a interesses pelo próprio benefício, mas reflitam juízos preconcebidos ou preconceitos locais que podem não sobreviver ao enfrentamento arrazoado de atitudes não restritas pelo mesmo paroquialismo? Qual papel da racionalidade e da razoabilidade na compreensão das exigências da justiça?

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