MICROCONTO-10  (Dez palavras)

                                "Nós na Rede"

Antes dos "gigas", éramos gigantes entre acervos, territórios.
Reticularam-me, amesquinhado...

 

        ...a mãe virou-se para pegar talco e pomada sobre a cama. Inquieto, ele revirou-se na cômoda e tchof, sem cuspe – quedou-se encestado na cestinha de lixo ao lado, de ponta cabeça. Queda rápida, sem conseqüências; amortecida pelas texturas macias de algodão e outras brancuras do interior da cesta. Nem resvalou o aro. E, como numa retomada da epifania do parto, o pai o resgatou pinçando-lhes os pés segundos depois, triunfante e  exclamando em júbilo - É lindo até de ponta cabeça!
        Fim de ano, fim de semana, fim de tarde; tarde sem fim. Com o tempo, habituou-se a tratar esses fragmentos inteiros de lembrança, que, da mesma forma como irrompiam do nada, ao nada se recolhiam cheios de nostalgia nebulosa, acostumou-se a denominá-los de vitrais do tédio. Talvez para reaver deles a poética do que se foi, em meio ao tédio do que, apenas, é. Se a vida fosse um quebra-cabeça...e ficou por ali, coçando suas inconclusões.
        O próprio Domingo estava inconcluso: seu time quase na ponta do campeonato (se virassem a tabela de ponta cabeça...), um abafamento viscoso estourando barômetros, prenunciando um temporal que não despencava nunca; perspectivas embaçadas pra semana e...a barba por fazer – um estilhaço no vitral!
        A barba e o Domingo; os domingos e a barba, a que fora crescendo como picadas no cerrado em sentido aleatório, sem padrão definido pela face, resultado de investida precoce com a lâmina do pai contra sua face de onze anos. Travessura de moleque em férias na praia, quando objetos pessoais perdem privacidade e excitam a imaginação. Especialmente, os perigosos, ainda que apenas para o sentido dos fios da barba de um homem. Toda manhã, uma indagação sobre este sentido, neste sentido...
        O Domingo e suas animosidades à flor da pele, aquela irritabilidade posta como a mesa posta e predisposta a todo tipo de encontro - intimidade que ficou à sombra esgueirando-se pelos cantos da agenda blindada ao longo da semana, agora reclama uma forma qualquer de expressão explosiva para romper o dique e azedar a modulação da voz, a truculência dos gestos menores. O monstro oculto pela rotina protocolar do não-dito: - Me passa o azeite e o controle remoto que esqueceu de trazer pra mesa. E, pra seu “controle”, eu prefiro adoçante no meu suco e não na salada. – Nossa, não pode desgrudar da televisão nem pra almoçar? Olhe suas olheiras, que horrível.  – Estão na moda, sabia? É, as velhas e boas olheiras do Sérgio Cabral pai, ganharam as eleições no Rio; voltaram por procuração genética, pra lançar um olhar mais “doce” para o morro...Sabia que quarenta por cento de mediação de conflitos é puro senso de humor? O que virou o FHC depois que operou as olheiras? – Ta acabando já o jogo, pelo jeito do seu humor, querido? Nunca vi almoçar tão tarde, meu estômago me pergunta se eu acho que ele é idiota pra ficar esticando essa enganação com queijinho e azeite. – Pois nem começou, conforme você nem viu; deixa a louça que depois eu lavo. Vou esperar o ciclone lá fora. – Que ciclone? – O extratropical com chuva de granizo, no mínimo, pra aliviar minha neurose barométrica. E arrastou a espreguiçadeira para perto das plantas.
        Depois eu lavo tudo, o ciclone lava o rebaixamento do time e o vento estilhaça o vitral de tédio. Agora é só realizar o nada. Mas ela esticou as pernas na muretinha, e as observava longas e prateadas, como prateada era a navalha que deslizava por elas. Passa as mãos pelo rosto, irritado. Reclinado, ela decide barbeá-lo.
        Trovões anunciam alguma trégua, o vento mais forte os acaricia, silentes.
        Debruçada sobre o pescoço dele, entregue, enquanto a navalha, precisa, corrige o relevo da pele dos onze anos, percebe o olhar agudo, imperturbável e o ângulo harmonioso daquelas mandíbulas. Nebulosidades espraiam-se lentas por trás daquele rosto feminino, oval; tão oval.  – Você é a mulher mais linda que eu já vi de ponta cabeça! Não me saia por aí de ponta cabeça, viu! – Pára, não meche. Barbear é preciso...
        - Viver não é preciso!       

        Pensava no Butão, no Reino do Butão a sete mil metros de altitude, lá nos Himalaias do oriente, entre a China e a Índia, sem mar algum. Você pensou num montão de homofonias, é razoável. Inda mais assim, aproximado de um “ismo” tão recorrente presidindo correntes de idéias, associações de pensamentos e atitudes, essas coisas todas. Mas o “butão” aqui não é de se apertar como num controle remoto e implodir o eixo da Economia, tal como se imaginava com a “bomba”, nos tempos da guerra fria.
        Mas vamos indo com calma, uma calma quase tibetana para lembrar que houve um mestre de capela, um compositor, nos tempos de Luis XIV e sua corte e as danças instrumentais de então, até porque, em nossa macroeconomia, não se dançou conforme a música, tenha sido qual for no tempo recente. O nome dele – Lully –, seus seguidores – “lullistas”. Eis o que torna razoável alguma confusão, esta que já vai parando por aqui. Mesmo tendo em conta que as danças que Lully “inventou” para a abertura de suas óperas, aí sim, eram tão populares como as cantigas de rua do século dezoito.
        E daí? Daí que, durante toda a Idade Média e até mais adiante, já no período renascentista, as danças eram a única forma de música instrumental e os instrumentistas que acompanhavam os dançarinos eram “classificados” como músicos do povo, meio “desincluídos” da categoria de “grandes” músicos. Então, se era em inclusão que pensava (e, convenhamos, só pode haver inclusão se houver inclusão na Economia, com toda essa conversinha de “respeito às diferenças, etc.), então voltamos ao Butão e  pronto.
            No Reino do Dragão, como é chamado, instituiu-se, a exemplo do “IDH” (Índice de Desenvolvimento Humano) enquanto baliza da saúde econômica de um povo, pois lá se inventou o “Índice de Felicidade”. E nem por isso deixaram de incorporar a ele o carcomido “PIB” e outros indicadores econômicos. Soa como música, pois não?
        Agora veja você, aliás, esqueça o “veja” – ouça você no que deu toda a movimentação fervorosa dos alunos e seguidores de Lully: deu nesse gênero a que se chama “suíte para orquestra”, o mais livre e mais aberto da música barroca; coisa sofisticada, difundida pelos franceses em toda a Europa até chegar à matemática musical de um J.S.Bach! À harmoniosa depuração da alegria dos sentidos e não há neurocientista honesto que o possa refutar.
        Claro que as pessoas do século dezoito não dançavam ao som das suítes instrumentais, mas o gênero suíte para orquestra conservou a medieval função recreativa da música de dança e, curioso: de tão utilizada como música de fundo em suntuosos banquetes, passa a se chamar, na Alemanha, Tafelmusik que quer dizer, saberia você? Quer dizer exatamente “música de mesa”.
        Mais do que há dez ou quinze anos atrás, se nos impõe agora uma pergunta; mais que isso, - um questionamento - aquele que se tornou, a nós, bem pertinente, e justo pela via musical: - “Você tem fome de que?”.
        A propósito, a ceia no seio da sua família...Que ceia?
        E isso de “inclusão”...Que seio?
        E “que família?”, perguntaria. Não.
        Não perguntaria
        Que algo de Butão “seja aqui”, antes que aquele deserto enorme alcance a China. Se é que você acompanhou o raciocínio sobre o “lullismo” e não andou comendo algum “L” por distração...Ou pelo hábito, anti-lullista, de “ligar o botão do f...-se” para tudo que não lhe invada a soleira da porta ou lhe ameace de morrer de sede.

Despediu-se em definitivo; pedra em cima, tomou-se de rumo.Voltou apenas para dizer do relativo do gesto, da insuficiência da linguagem e que, sobre a lapidação da pedra, a propósito, mudara de provedor e etc.; ah, também que o etecétera era provisório e que o contrário de "rumo" poderia ser "amor" mas era "omur" mesmo.

 

Quando arranjou uma moça, na cabeça, foi ter com ela e depois com o  corpo dela. Ocuparam-se em mapear um mundo neles. Do impulso ao  roteiro e, deste, à rotina até o dia em que perdeu a cabeça e ela o  corpo. Uma fatalidade. 

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A expressão não é minha, pertence ao G. Deleuze, filósofo contemporâneo que bate duro contra os conformismos conceituais e fustiga as bizarrices desta nossa hipermodernidade tão tagarela, tão exuberante em respostas pra tudo e tão... lacunar. Lacunas abissais de sentido, no jeito de consumir e expressar idéias e afetos. Gagueira, aqui, não é coisa de fono nem de generalismos psicológicos. É atitude! Forma de resistência contra a fluência domesticada. E foi outro filósofo de prenome abreviado "G", outro Gilles, o Lipovetsky, quem cunhou "hipermodernidade" bem a propósito de uma analogia com hipermercado...

Não é minha, mas me pertence por dois motivos. Primeiro, eu a adotei, e só não a tenho praticado pra fazer compra básica, ir ao banco ou abastecer o carro, coisas que não me tomam muito tempo.

Segundo motivo: estou ficando gago, cada vez mais gago, e de propósito!

O pano de fundo da resistência proposta por G.Deleuze é a obra de arte, e ele vai fundo na postura de transgressão, que constitui a potência que a demarca, na linha direta de Nietzsche. Pega o "ponto G", pra não perder nem o trocadilho nem a alusão a uma espécie de orgasmo do sentido, embutida em seus "agenciamentos" filosóficos. Para o que me interessa aqui, o contexto é a comunicação, e a postura (esqueçam "atitude", palavrinha já reabsorvida e estéril) é a de emancipação. De quê? Do tédio, no mínimo. Ou, pra ficar mais elegante, da colonização dos meus atos de fala, por uma espécie de eloqüência pré-editada, essa que me obriga a dizer conforme. Tirante as saudações (Alô! Bom dia!, Belê?) e a burocracia dos formulários verbais, considero um delito grave preencher silêncios com a verborragia prescrita pela cartilha do papo-jacaré, contra a fobia do não ter o que dizer. Pois é prescrição mesmo, com poderes de regulamentação do ritmo, da velocidade, da adequação às circunstâncias e, pior...do que deixa de ser falado pelo fluxo da própria falação.

Falar-se pra manter-se incomunicável, já que, tamanha é a excessividade de tudo, que a própria ameaça de silêncio conspira. A gente passa um rodo nos fragmentos de informação do dia, retira-lhes qualquer contexto, separa tudo em bloquinhos e gruda neles alguns adesivos ou ícones, como rótulos bem práticos. Agora é só esperar uma sinalização, uma ameaça de conversa e pronto, o "kit blábláblá" estará operante. Contemplamos pouco, refletimos menos ainda. E falamos pelos cotovelos. Incomunicabilidade - palavrão, pois sim, hiper-palavra pra palavra pouca.

Estamos vivendo rente ao fantasma dos fatos; os fatos perdendo sua carga de significação para as imagens e estas, pulverizando-se, substituindo-se umas às outras, viram borrões isolados. Para nos orientarmos, apontamos para borrões e emitimos ruídos. Quando decodificados, temos a ilusão do diálogo, da troca simbólica. Na verdade, permanecemos mudos.

Pois estou me desobrigando de responder a esse padrão de mutismo ruidoso. E apresento-lhes esse meu "des-falar", sob a forma de uma gagueira subversiva. Com funciona?

Bem, de cara é necessário uma não aceitação fundamental: a de submeter o que há de singular em mim (dimensão estética) e de outrem (dimensão ética) ao idêntico. Não se trata apenas de "respeitar" a diferença, é preciso trazê-la à visibilidade escancarada, cutucá-la com a vara curta do silêncio, das pausas longas, da recusa ao tatibitate marmanjo habitual. Isto é gagueira.

Ao contrário do que se pensa, os vacilos verbais recheados de gíria e outras embreagens coloquiais (dos muito jovens, por exemplo), a titubeante falsa modéstia dos "operários-padrão" da linguagem dominante (das celebridades sob holofotes, por exemplo) e outros estereótipos da má fluência ensaiada (do pseudodiscurso acadêmico dos economistas, da pseudo-religiosidade dos vigaristas do ramo da fé, da indignada "moralidade" de políticos golpistas-o "exemplo", por excelência...), nada disso é, aqui, o que chamo de gagueira. É tudo jogo de cena ou malvadeza retórica. Comparados às esquisitices de linguagem que brotam nas salas de bate-papo, estas lhes superam em riqueza pura, verdadeiros diamantes do tesouro da Língua, e ponto.

Só pra ilustrar a idéia dessa gagueira, imaginem o Pivô, o competente entrevistador da TV francesa (separando bem o Jô... do trigo), todo hiperbólico e loquaz entrevistando uma conhecida escritora. Ele esperneia palavras, pergunta o imperguntável, abusa do lugar-comum, vertiginosamente palavroso. Ela (incomum, singular, reflexiva) subverte o tempo televisivo, comete longas pausas, pensa longo e responde curto, reticente. Questiona-se vagarosa e docemente, repete finais de frases, incorpora e sustenta a fragilidade do dizer, silenciando a platéia. E Pivô? Pouco riso e muito siso.

Responder questionando-se a si próprio no outro, eis uma nobre estratégia de gagueira. Uma "nanoprofilaxia" contra os microtraumatismos de todo falar esvaziado. Gagueira.

Dizem que é coisa de analista. Concordam com isto? Faz mal bater um papo assim aflito com alguém? Aflita, Hilda Hilst confidenciou-me certa vez (se é que faz sentido juntar confidência com Hilda Hilst...) que um escritor não deveria dar entrevista: "(...) é muito difícil pra mim... falar, falar das coisas que não se esgotaram no escrito (...) falar de mim, que escreve...".

Inventaram um guarda-chuva que avisa quando vai chover! E se não chover? Você o carrega fechado, claro, até ele avisar. Então você o abre até que pare de chover e depois o fecha quando a chuva parar, embora ele não avise que a chuva parou. "Será que vai chover?" Já dizia Herbert Viana - o compositor, e emendava: - "Eu acho que vai chover".A música falava da mulher que "despistava" o tempo todo, diante de um cara carente de atenção. E a gente anda carente de inventividade. Gaguejar é resistir, deixar pistas de si pelos cotovelos e descobrir toda a carência sob guarda-chuvas que não avisam nada, e vivem esquecidos pelos cantos.

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