FMI: empréstimos de Nova Guerra Fria à Ucrânia

Interessa aos Estados Unidos que o MERCOSUL seja desmontado e que projetos da era tucana sejam retomados. Não nos enganemos: nestas eleições, está em jogo a retomada do processo privatizador, parcial ou total, da Petrobras, do Banco do Brasil e do BNDES.
[Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães: — Com Aécio fora do jogo, EUA se inclinam para Marina − 6/9/2014, Entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães a Dario Pignotti] [**]

Fundo Monetário Internacional
por Latuff/2010

Em abril de 2014, logo depois de manifestações contra os cleptocratas na Praça Maidan e o golpe de 22 de maio de 2014, e menos de um mês antes do massacre de Odessa, do dia 2 de maio de 2014, o FMI aprovou um programa de empréstimos de US$ 17 bilhões para a junta na Ucrânia. A prática normal do FMI é emprestar no máximo duas vezes a cota de cada país num único ano. Aquele empréstimo feito aos golpistas da Ucrânia foi oito vezes superior à cota da Ucrânia.

Quatro meses antes, dia 29 de agosto 2014, exatamente quando Kiev começou a perder na guerra de limpeza étnica que movia contra a região do Donbass, no leste da Ucrânia, o FMI concedeu o primeiro empréstimo jamais concedido, em toda a história do Fundo, a país engajado em guerra civil, sem falar de fuga de capitais e da balança de pagamentos em colapso. Baseado em projeções fictícias, que “apagavam” as dificuldades de a instituição vir algum dia a ser paga, o empréstimo sustentou a moeda ucraniana, a hryvnia, por tempo suficiente para que os bancos dos oligarcas transferissem as contas em moeda ucraniana, antes que a hryvnia despencasse e passasse a valer, a cada dia, menos euros e dólares.

Esse empréstimo mostra até que ponto o FMI é um braço da política de Guerra Fria dos EUA. Os termos desse empréstimo impunham a austeridade “de praxe”, como se alguma “austeridade” pudesse estabilizar finanças de países devastados por guerras. Todo o dinheiro, obviamente, foi usado para reconstruir o exército. O leste da Ucrânia nada recebeu nem jamais receberá, por mais que se saiba que a infraestrutura local de hospitais, fornecimento de água e de geração de energia tenha sido destruída. Áreas civis, residenciais, precisamente as mais duramente atacadas, absolutamente não conhecerão os benefícios dessa rara prova de generosidade desinteressada, do FMI.

Um quarto das exportações da Ucrânia vinham dessas províncias do leste e eram vendidas principalmente à Rússia. Mas Kiev bombardeou e continua a bombardear as indústrias do Donbass e deixou as minas de carvão sem energia elétrica para operarem.. Perto de meio milhão de civis já fugiram para a Rússia. Mesmo assim, o FMI elogia:

O FMI elogiou o compromisso do governo ucraniano, que se dedica a promover reformas econômicas, apesar do conflito em andamento.

Ridículo. Não surpreende que tais empréstimos e tais elogios não tenham sido noticiados nem na imprensa especializada em economia & business!

O empréstimo com certeza aumentou o conflito interno no próprio FMI, entre os economistas empregados, que se manifestaram abertamente na reunião anual de 2013 em Washington. Naquele momento, o problema foi o desastroso empréstimo de US$ 47 bilhões que o Fundo concedera à Grécia – naquele momento o maior empréstimo da história do FMI – tema de um documento interno do FMI, de 50 páginas, que vazou para o Wall Street Journal.

Reconhecendo que o FMI “subestimou gravemente o dano que as medidas prescritas de austeridade causariam à economia da Grécia,” economistas do quadro de empregados do FMI culparam a pressão exercida por países da eurozona para proteger “seus próprios bancos que tinham grande parte da dívida do governo grego” (...). O FMI projetara originalmente que a Grécia perderia 5,5% de seu output econômico entre 2009 e 2012. Mas o país perdeu 17% em termos reais, do PIB. O plano previa 15% de desemprego em 2012; chegou a 25%.

O Ato de Constituição do FMI proíbe que se façam empréstimos a países que claramente não têm condições para pagar, o que levou economistas do próprio FMI a declarar, na reunião anual, que a própria instituição estava violando suas regras de não fazer empréstimos podres, “a países incapazes de pagar as próprias dívidas”. Um daqueles economistas disse que aquela Análise de Sustentabilidade da Dívida não passava de “uma piada”; uma comissão oficial [europeia] descreveu-a como “histórias da carochinha para fazer crianças dormirem” e um ministro de finanças grego descreveu-a como “cientificamente ridícula”.

Na prática, o FMI simplesmente “adiantou” o dinheiro de que um país precisava para pagar seus banqueiros e acionistas, fingindo que mais austeridade ampliaria a capacidade de pagamento do país para reembolsar o empréstimo (não que só faria aprofundar a armadilha da dívida), enquanto Kiev usou o dinheiro também para despesas militares, para poder atacar as províncias do leste do país.

Tudo isso levanta a questão de se o empréstimo do FMI é de fato uma “dívida odiosa” que está sendo contraída por uma junta militar e roubada por insiders, dentro do governo.

John Helmer, do blog Dances with Bears [danças com ursos], calcula que:

(....) dos US$ 3,2 bilhões desembolsados pelo FMI para o tesouro ucraniano no início de maio, US$ 3,1 bilhões já haviam sumido em paraísos fiscais em meados de agosto.

Diferente do que o fez no mais recente empréstimo desastroso a Chipre, o FMI não revelou os próprios argumentos. Mas deixou claro que o Banco Nacional da Ucrânia [orig. National Bank of Ucrânia (NBU)] – o banco central ucraniano – estava simplesmente passando adiante o dinheiro para os cleptocratas que controlam todos os bancos do país como parte dos próprios negócios, e financiando o ataque militar contra o leste do país:

A proporção dos seguros e empréstimos a bancos aumentou de 28% do patrimônio do Banco Central ucraniano no final de 2010, para 56% no final de abril de 2014.

A situação financeira estava piorando. Ante os riscos crescentes de insolvência, já se sabe que os principais bancos da Ucrânia precisarão de mais US$ 5 bilhões além e acima dos US$ 17 bilhões que o FMI já se comprometeu a “fornecer”.

Na preparação para as eleições marcadas para outubro, as províncias do leste não têm condições objetivas para votar; e a junta já baniu o Partido Comunista e também está censurando televisões e jornais. Os partidos pró-guerra não conseguem conquistar eleitores nem no oeste do país (como já aconteceu no início de setembro). Há sinais de novo golpe do Setor Direita e de nacionalistas ucranianos aliados a neonazistas, comandados pelo oligarca Igor Kolomoisky, homem que mantém seu próprio exército privado. Lê-se, em Johnson’s Rússia List (não há versão online [1]):

Ante a derrotada em guerra, está à vista nova mudança de regime. O espectro de um golpe ronda outra vez as ruas e praças de Kiev. Guardas da Guarda Nacional sobreviventes ameaçam voltar-se contra Poroshenko. Está tomando forma um terceiro movimento na Praça Maydan, para varrer do poder o atual governo. Os instigadores do movimento, dessa vez, são militantes dos esquadrões-da-morte criados com o dinheiro de Kolomoyskyy. É claro que são os oligarcas, jogando o próprio jogo contra Poroshenko. Kolomoyskyy mantém a seu serviço um forte exército privado, capaz de impor qualquer golpe.

Planos de privatização para a Ucrânia: FMI & EUA

Não nos enganemos: nestas eleições, está em jogo a retomada do processo privatizador, parcial ou total, da Petrobras, do Banco do Brasil e do BNDES.
[Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães: — Com Aécio fora do jogo, EUA se inclinam para Marina − 6/9/2014, Entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães a Dario Pignotti] [***]

O principal problema da Ucrânia é que a dívida do país é denominada em dólares e euros. Parece haver um único meio para a Ucrânia levantar moeda estrangeira para pagar o que deve ao FMI e a financiadores da OTAN reunidos para ajudar a ocidentalizar a economia do país: vender recursos naturais, a começar por direitos do gás, e terra cultivável.

Aqui a figura sinistra de Kolomoisky ressurge, com total apoio dos EUA. Recente lei aprovada pelo senado [Senate Bill 2277]

(...) “ordena que a Agência para Desenvolvimento Internacional dos EUA aprove empréstimos para todas as fases de desenvolvimento de projetos de petróleo e gás” na Ucrânia, Moldávia e Geórgia.

Hunter (E) e Joe Biden 

O filho do vice-presidente Biden, R. Hunter Biden, foi recentemente contratado para dirigir a empresa Burisma, empresa ucraniana de gás e petróleo registrada em Chipre, há muito tempo uma das favoritas dos operadores pós-URSS. A empresa tem suficiente influência sobre a política de Kiev, para fazer, da prospecção de gás de xisto em terras ucranianas um objetivo militar. Como se lê no Peu Report, citando relatório do periódico Economic Policy Journal[2]

Soldados ucranianos ajudaram a instalar equipamento para produção de gás de xisto perto da cidade de Slavyansk, no leste da Ucrânia, que eles mesmos bombardearam sem parar ao longo dos três meses anteriores, disse a agência novorussa de notícia por sua página na internet, citando moradores da cidade. Civis protegidos pelo exército ucraniano estão já prontos para instalar equipamento de perfuração. Mais equipamento está chegando, dizem eles. Informam também que os militares estão cercando toda a futura área de extração.

A imprensa-empresa ocidental nada noticiou sobre os protestos populares no leste e no oeste da Ucrânia contra a extração do gás de xisto [orig. fracking] e por questões de uso do solo em geral, mas há pelo menos uma informação:

A população de Slavyansk, cidade localizada no coração do campo Yzovka de gás de xisto, organizou inúmeras ações de protesto no passado, sempre contra a exploração e desenvolvimento daquele tipo de recurso. Querem, mesmo, realizar um referendo para decidir sobre a questão...

O fracking polui o solo, a água e o ar

Países como a República Tcheca, os Países Baixos e a França já desistiram de projetos que tinham para desenvolvimento de gás de xisto em seus países. Não só esses, mas também a Alemanha, sempre importante, que há duas semanas anunciou que suspenderá “a perfuração em campos de gás de xisto, durante os próximos sete anos, por causa dos riscos de contaminação dos depósitos subterrâneos de água”. Aos EUA e ao FMI, só interessa reduzir a dependência dos europeus, do gás russo, e fazer a balança de pagamentos pender a favor dos EUA, não da Rússia, como mais um fator para conter os russos, na Nova Guerra Fria.

Mas tudo isso envolveu aliança potencialmente muito embaraçosa entre EUA e Kolomoisky, um dos principais proprietários da empresa Burisma, mediante seu Privat BankRobert Parry destaca que:

Kolomoisky foi nomeado pelo regime golpista para ser governador da província (Oblast) de Dnipropetrovsk, no centro-sul da Ucrânia. Kolomoisky também tem sido associado ao financiamento dos brutais esquadrões-da-morte que promovem ações de limpeza ética no leste da Ucrânia, contra russos.

Outro recurso natural ucraniano a ser vendido é terra agricultável. Já há ali pesado investimento da empresa Monsanto em grãos geneticamente modificados. Relatório recente distribuído pelo Oakland Institute, “Caminhando pelo lado oeste: Banco Mundial e FMI no conflito ucraniano” (ing.), descreve pressões para desregular o uso da terra agricultável ucraniana e promover a venda a investidores dos EUA e de outros países. O Instituto Oakland observa que “a IFC aconselhou o país a apagar todos os impedimentos para certificação de alimentos nas leis ucranianas“ e a “evitar aumentar desnecessariamente os custos para as empresas” com regulações sobre uso de pesticidas, aditivos etc..

Pare com os transgênicos!

O mais intrigante é que nem a Rússia nem a maioria dos países europeus aceitam produtos geneticamente modificados. Parece, assim, que o único modo pelo qual a Ucrânia conseguiria exportar seus alimentos é se a diplomacia norte-americana conseguir que a Europa derrube suas leis contra organismos geneticamente modificados. Pode ser mais uma dificuldade entre os EUA e países europeus membros da OTAN.

Será caríssimo reconstruir as instalações de infraestrutura de água e eletricidade destruídas pelas forças de Kiev em Donetsk – que enfrentará longo inverno, gelado e escuro. Kiev parou de pagar pensões e aposentadorias no Leste da Ucrânia.

Mesmo antes dos eventos da Praça Maidan, a população local já tentava impedir a extração de gás de xisto (fracking) , exatamente como a Alemanha e outros países europeus também estavam fazendo. A população também se manifestou várias vezes contra a apropriação de terras por cleptocratas ucranianos e por empresas como a Monsanto que operam com sementes geneticamente modificadas –, mais uma vez exatamente como a Alemanha e outros países europeus também têm reagido contra colheitas obtidas de organismos geneticamente modificados.

[Continua]


8/9/2014, Michael HudsonNaked Capitalism
Michael Hudson: Losing Credibility – The IMF’s New Cold War Loan to Ukraine
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

[*] Michael Hudson (nascido em 1939, Chicago, Illinois, EUA) é professor e pesquisador de economia na Universidade de Missouri–Kansas City (UMKC) e pesquisador associado do Bard College. É ex-analista e consultor em Wall Street; presidente do “Instituto para o Estudo de Tendências Econômicas de Longo Termo” (Institute for the Study of Long-term Economic Trends - ISLET) e um membro-fundador da "Conferência Internacional de Pesquisadores de Economias do Antigo Oriente Próximo" (International Scholars Conference on Ancient Near Eastern Economies - (ISCANEE).

[**] e [***] Notas acrescentadas pelos tradutores.

Notas de rodapé

[1] Marina Perevozkina e Artur Avakov, Moskovskiy Komsomolets, 4/9/2014, da Johnson’s Russia List, 6/9/2014, #14. Acrescentam que Putin ordenou o sequestro das propriedades de Kolomoyskyy na Crimeia e em Moscou.

[2] O relato acrescenta: Além da “questão do gás”, há também o fato de que foi o vice-presidente dos EUA Joe Biden quem mandou que o presidente Yanukovich retirasse suas forças policiais dia 21 de fevereiro de 2014, movimento que abriu caminho para o avanço das milícias neonazistas e para o golpe apoiado pelos EUA. Na sequência, três meses depois, a maior empresa privada de gás da Ucrânia, Burisma Holdings, contratou o filho de Biden, Hunter Biden, para integrar seu corpo de diretores.

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