DICIONÁRIO DE SUICIDAS ILUSTRES

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 Uma vez o Lima Barreto escreveu: “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi desde essa época que eu senti a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a incompreensão da minha delicadeza, do meu natural doce e terno; e daí também comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade, de modo que as minhas cousas me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante. (...) Hoje, quando essa vontade me vem, já não é o sentimento da minha inteligência que me impede de consumar o ato: é o hábito de viver, é a covardia, é a minha natureza débil e esperançada” (16 de julho de 1908)*. Na semana passada, a OMS** divulgou o seu mais recente relatório sobre um assunto que continua sendo tabu, motivo de vergonha, sinônimo de loucura, proibido nas mesas de bares ou no almoço com a família, por ocasião do Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, as estimativas revelam que para cada pessoa que consegue se suicidar, 20 ou mais tentam sem sucesso. E que a estima dos mais de 1,1 milhão de suicídios a cada ano poderia ser prevista e evitada.  E, talvez por causa disso, no último domingo à noite a Record mostrou uma reportagem sobre o assunto num dos seus telejornais e o SBT, muito mais preocupado com a guerra pela audiência, exibiu o excelente filme “Constantine” que trás no seu argumento a morte, a condenação da alma, o cruzar de braços da Igreja e a eterna guerra entre anjos e demônios.     
“Como já passou pela cabeça de todos os homens sãos o seu próprio suicídio, poder-se-á reconhecer, sem outras explicações, que há uma ligação direta entre este sentimento e a atração pelo nada” – disse certa vez ninguém menos que o escritor argelino Albert Camus. Segundo ele, a questão fundamental da filosofia é responder se realmente vale a pena ou não viver, mas complementando a opinião do Camus, o cansaço existencial e as crises constantes também alimentam esse desejo de morte.
Ainda lembro do dia em que fui comprar o meu “Dicionário de Suicidas Ilustres” e do o vendedor perguntando umas três vezes se era realmente aquele o livro que eu queria levar. Achei meio estranho a pergunta, mesmo porque já havia comprado outros livros naquela livraria. Mas, enfim, não dando muita bola para as esquisitices dos outros, terminei levando a obra para casa do mesmo jeito. Hoje em dia, toda vez que alguém aparece aqui no quarto, acaba perguntando o motivo que eu comprei o dicionário. As pessoas acham o livro meio mórbido, mas o que eu posso fazer, o livro é mórbido mesmo porque aborda um assunto que ninguém quer discutir: o suicídio.
O termo “suicídio” foi utilizado pela primeira vez em 1737 por Desfontaines. A definição tem origem no latim, na ligadura das palavras “sui” (si mesmo) e “caederes” (ação de matar). O assunto até já foi capa da revista “Superinteressante” que, numa excelente reportagem, afirmou que a cada 40 segundos alguém se suicida em algum lugar do mundo. Mas o que tudo indica que, numa aparência geral, é um ato “voluntário por qual um indivíduo possui a intenção e provoca a própria morte” e talvez, justamente por causa disso, seja tão criticado e ignorado pela sociedade, pois é uma coisa que ainda estarrece, incomoda e silencia. Na civilização greco-romana a morte não era tão significativa, importante mesmo era a forma de morrer: com dignidade e no momento sensato. Já para os primitivos cristãos, a morte foi encravada em suas mentes erroneamente com libertação, pois a hipócrita doutrina católica-cristã até hoje prega que a vida é um "vale de lágrimas e pecados" e que a morte surgiria como uma trilha ao paraíso. Trilha bem estranha essa, não acham?
E nesse ponto, para complementar, as religiões sempre colocam o bedelho contra esse ato, baseadas no fato de que somente Deus tem o direito de tirar qualquer vida, pois é Ele quem a dá. Até hoje os casos de suicídios são deliberadamente mascarados nas estatísticas oficiais. Atire a primeira pedra (ou mande um e-mail) quem nunca pensou em morrer para escapar de alguma sensação de dor. Porém, temos que ser francos, que há suicídios e suicídios. A Doutrina Espírita, por exemplo, além de concordar com essa opinião, provou com o passar do tempo que o nada não existe e que o indivíduo sobrevive ao túmulo, mostrando-se um poderoso antídoto contra o suicídio. Mas, segundo o psiquiatra e psicanalista Roosevelt Cassorla, autoridade no tema e autor de três livros sobre o assunto, na introdução do “Dicionário de Suicidas Ilustres” afirma que “na melancolia e esquizofrenia, fatores biológicos constitucionais parecem ter uma importância considerável, influenciando as maneiras como as fantasias inconscientes se dinamizam, incluindo ameaças de desagregação e aniquilamento”. Cassorla ainda completou que “o maior problema destes indivíduos, no entanto, é que não suportaram frustrações”.
ARMADO PARA MORRER – Mas no caso do “Dicionário de Suicidas Ilustres” que foi iniciado em 1995 (a idéia originou-se em 1984, quando o escritor Pedro Nava (1903-1984) se suicidou e o J. Toledo (organizador do dicionário) almoçava na casa do pintor Carlos Scliar, em Ouro Preto) a temática surgiu, a princípio, motivada pela perplexidade filosófica do Toledo diante do fenômeno "suicídio", especialmente, quando este é cometido por pessoas – de um modo ou de outro – proeminentes.  E entre os vários verbetes, o autor, jornalista e artista plástico J. Toledo foi colecionando muito material e, nesse meio tempo, a idéia se consolidou e a obra passou a ser efetivada.
Destes, vêem-se artistas, filósofos, escritores, poetas, dramaturgos, atores, cineastas, cantores, físicos, químicos, matemáticos, médicos, religiosos, políticos, reis, imperadores, militares, desportistas, agitadores, assassinos, enfim, seis Prêmios Nobel, inúmeros Prêmios Pulitzer, mais uma grande quantidade de suicidas (ficcionais) famosos na literatura, no teatro, na música e no cinema, e alguns dos mais notáveis personagens da mitologia.

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“O suicida (deprimido, melancólico, psicótico, ou sem doença mental clara – e estes são a maioria) costuma comunicar sua desesperança e desespero ao ambiente, incluindo por vezes planos suicidas. Uma tentativa de suicídio não bem-sucedida é uma mensagem desesperada”. Na foto ao lado, Marilyn Monroe, que no verão de 1962 suicidou-se (ou foi morta?) com apenas 36 anos.

Segundo matérias da época do lançamento do dicionário, Toledo se armou de várias fontes e trabalhando mais de quinze horas diárias, pesquisando, redigindo e entrevistando (telefonicamente e on-line via Internet), consultou dezenas de pessoas, contando ainda com a ajuda de um batalhão de amigos, no Brasil e no exterior, organizando um precioso arquivo de seus personagens. E de toda essa documentação, originalmente, foram levantados mil nomes. Contudo, e dentro dos padrões que estabeleceu, foram escolhidos 720 suicidas ilustres que acabaram biografados.
E o motivo principal para todo seu trabalho de pesquisa decorre de ser, ao mesmo tempo, um assunto tabu, porém, atraente a todos: o livre-arbítrio entre permanecer vivendo ou partir por conta própria, sobretudo, quando o fato reveste-se de pudor pelos puritanos, dicionaristas, a imprensa, igrejas, escolas, família e a História. Atualizado, o dicionário chega ao primor de conter tantos verbetes recentes, como o do pintor francês Bernard Buffet, que se asfixiou com um saco plástico no dia 4 de outubro de 1999; como o do famoso caso do compositor russo Tchaikovski que, aos 53 anos, no auge do sucesso, conforme um dos rumores, se suicidara bebendo propositalmente um copo d´água não fervida durante uma epidemia de cólera em virtude das supostas acusações de homossexualidade; ou também o caso da namorada do PC, a Suzana Marcolino. 
A LISTA MACABRA – “No caso de fazer-se uma investigação sobre o suicídio, esta, provavelmente revelaria que a quantidade de indivíduos que se têm matado é maior que aquela dos que se matam em virtude de um sentimento de separação ou isolamento social” – disse Wolfgang Paalen, artista plástico austríaco, que por motivos desconhecidos e aos 54 anos se matou com um tiro no coração. E no meio da macabra lista com centenas de suicídios, também podemos destacar o polemista português Uriel Acosta que revoltado contra a sinagoga de Amsterdam, ali entrou, matou a tiros de bacamarte seu principal perseguidor e, diante do púbico perplexo, matou-se com um tiro no peito; a santa Apolônia que, para escapar à brutalidade dos homens, atirou-se às chamas; o maravilhoso escritor cubano Reinaldo Arenas (*ainda vou resenhar algum livro do Reinaldo – enquanto isso pegue na locadora o DVD “Antes que Anoiteça”); o compositor da cidade de Santo Amaro (BA), Assis Valente, que se jogou do Pão de Açúcar; o amigo pessoal de Charlie Chaplin, o caricaturista norte-americano Ralph Barton; o poeta tropicalista Torquato Neto; a filha do ator Marlon Brando, Cheyenne Bando; o líder nazista alemão Hitler e sua amante, Eva Braun; os famosos bandidos americanos Butch Cassidy e Sundance Kid; o autor de “Amor de Perdição”, Camilo Castelo Branco; a excelente poeta carioca Ana Cristina Cesar; o poeta romântico inglês Thomas Chatterton; a rainha egípcia Cleópatra; o líder da banda de rock Nirvana, Kurt Cobain; o presidente do Brasil, Getúlio Vargas e também o seu filho Maneco Vargas (“Não pretendo entrar para a História mas, simplesmente, deixar a História passar”); o líder da banda inglesa Joy Division, o talentosíssimo Ian Curtis; a maravilhosa Pagu; a cantora e atriz norte-americana Judy Garland que morreu sentada numa latrina; o famoso serial killer e escritor Jack Unterweger; o pintor impressionista Van Gogh e o escritor e dramaturgo russo Gogol.
E a lista não termina, contando também com o líder da banda INXS, Michael Hutchence; com o Judas Iscariotes (e a sua história muito mal contada na Bíblia); com a mãe do Édipo, a Jocasta; com o líder religioso Jim Jones, aquele que ordenou que seus seguidores tomassem ponche com cianeto – total de mortos 913, incluindo 276 crianças. E baseado no drama de Shakespeare, os jovens amantes Romeu e Julieta; além do diretor de cinema japonês Akira Kurosawa; do líder da banda punk Sex Pistols, o Sid Vicious; do ator norte-americano e pai da atriz Cheryl, do seriado “As panteras”, Alan Ladd; do escritor do maravilhoso livro “Caninos Brancos”, Jack London; da milionária Lota de Macedo Soares, que matou-se por causa de um amor por outra mulher; do filho do Thomas Mann, o também escritor Klaus Mann; da filha do filosofo Marx, a Eleanor Marx; da mulher do ex-Beatle Paul, a Linda McCartney; do poeta português Camilo Pessanha; do neto de Pablo Picasso, com o mesmo nome (*eu até o citei num conto no meu livro “Diálogos Inesperados sobre Dificuldades Domadas”), que aos 24 anos bebeu uma garrafa inteira de água sanitária (a mulher de Antero Quental se suicidou da mesma forma e o poeta português também cometeu suicídio); do Pôncio Pilatos, que ficou conhecido pelo julgamento e execução de Cristo; do herói bíblico Sansão; do deprimido Santos Dumont; da excelente escritora Virginia Woof (*assista o filme “As Horas”) até o maravilhoso poeta Dylan Thomas que morreu na miséria; e muitos outros, mas não menos importantes, que se tornaria enfadonho aqui agora listar.     

http://www.jornalorebate.com/86/1_clip_image005.jpg O escritor norte-americano Hemingway, autor de “O Velho e o Mar”, teve o pai, irmã, irmão e uma sobrinha que se mataram, enquanto ele tentou cinco vezes o próprio suicídio. Numa delas, tentou se jogar nas hélices de um avião. Por fim, matou-se dando um tiro de espingarda na boca, puxando o gatilho com os pés.

DA NAMORADA DO ZÉ ATÉ MARY SHELLEY – Uma morte curiosa e estranha foi a da psicóloga e guerrilheira Iara Iavelberg que foi namorada do José Dirceu (que nessa época tinha cara de galã de TV) e que quando cercada por forças militares em seu apartamento no bairro da Pituba, aqui em Salvador, aos 27 anos, no auge da beleza, optou pelo suicídio, dando um tiro no coração. Mas o J. Toledo também é muito irônico ao descrever a morte da panfletista londrina Harriet Westbrook quando cita que “nada fez de extraordinário senão ser raptada pelo poeta romântico inglês Percy Shelley aos dezesseis anos, casar-se, ter filhos e morrer”. Percy, enquanto Harriet dava a luz aos segundo filho, se apaixonou pela escritora feminista Mary Godwin, com quem casou depois da morte de Harriet. Godwin depois da união com Percy tornou-se muito conhecida com a obra “Frankenstein”. Lembra de Mary Shelley?      
Um caso me deixou muito impressionado: a história do escritor norte-americano John Kennedy Toole que passou o resto de sua vida tentando publicar o livro “A Confederacy of Dunces”, sem sucesso, e no ano de 1969, desesperado com o fracasso pessoal, acreditando-se um autor frustrado, matou-se com apenas 32 anos. Suicidou-se inalando monóxido de carbono. Depois de sua morte, sua mãe continuou tentando vender o livro do filho, até que, muito tempo depois, finalmente conseguiu persuadir o romancista Walker Percy a ler a obra. Surpreendido com a qualidade do livro de Toole, convenceu uma editora a publicá-lo. O livro recebeu críticas favoráveis, teve sucesso popular, ganhou o Prêmio Pulitzer, foi traduzido para dez idiomas, vendeu milhões de cópias e seu autor, só postumamente (infelizmente), igualado aos grandes. Tenho o maior medo de que o mesmo venha acontece comigo. E, no meu caso, num país de outras prioridades urgentes em que a arte não está inclusa, duvido muito que mesmo depois de morto alguém venha descobrir o talento nas minhas linhas tortas.  
Porém, no dicionário, e sem a menor intenção de criar uma obra que faça apologia ao tema — considerado tabu pela moral e por diversas religiões — são mostradas biografias de pessoas infelizes, muitas delas com muito sucesso, mas confusas e perdidas. Achei muito interessante a grande quantidade de verbetes sobre os personagens ficcionais suicidas que se tornaram célebres tanto na literatura quanto no cinema, como Anna Karenina, heroína do livro homônimo, escrito pelo russo Tolstói. Anna se atira sobre os trilhos de um trem. Toledo também relembra os suicidas mitológicos da antiguidade clássica, como Antígona. E eu aqui, queria também contribuir com mais um personagem ficcional: Frederico, o poeta punk do meu livro, em co-autoria com Anna Carvalho, “Clandestinos”. E afinal, a conclusão a que o autor desse surpreendente dicionário deve ter chegado é que ninguém parece estar a salvo de se matar, perplexidade, esta, demonstrada também na epígrafe que escolheu para seu livro. Só senti falta no livro de fotos para os verbetes, poderia ter ficado muito melhor, pois nem consegui identificar todos os ilustres na capa da obra. (“DICIONÁRIO DE SUICIDAS ILUSTRES” de J. Toledo, Rio de Janeiro, 360 págs. 1999 - Record)

* Lima Barreto, in “Um Longo Sonho do Futuro”, Ed. Graphia, Rio de Janeiro – 1993. 
** Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) cerca de 3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo, o que significa que a cada três segundos uma pessoa se mata.