Com pé e cabeça

"Sem pé nem cabeça" é uma expressão de origem latina muito usada na língua portuguesa, significando algo que não tem sentido. Pé e cabeça, pelo prisma simbólico, podem ter acepções profundas. Pé, por exemplo, leva-nos à ideia de base, de natureza. Já cabeça nos remete a pensamento, mente, espírito.

No mundo ocidental, a partir do renascimento, o pé passou a ser visto com asco por tratar-se da parte do corpo que toca o chão sujo. Em fins do século XV, o filósofo italiano Picco della Mirandola escreveu, em "A Dignidade do Homem", que os pés são desprezíveis, pois sobre eles a alma se apoia no solo, na libido e na indolência.

Metaforicamente, era o começo da separação entre natureza e espírito, que alcançou seu ápice na filosofia mecanicista do século XVII. O sistema concebido pelo pensador René Descartes e seguido por tantos opunha natureza e espírito, animal e ser humano, corpo e mente, objeto e sujeito. Só o "Homem" sentia e pensava. O espírito, no sentido de pensamento, usava o corpo para se sustentar, prendendo-se a ele por um tênue fio representado pela glândula pineal.

Blaise Pascal, pensador contemporâneo de Descartes, destoou do mecanicismo, afirmando que os seres vivos se diferenciam uns dos outros pela cabeça, mas se nivelam pelos pés. A concepção que separa natureza e cultura ainda impregna o mundo ocidental e ocidentalizado. No entanto, agora, emerge outro paradigma buscando a união de natureza e cultura. Se, no paradigma mecanicista, a cabeça não tinha pé, atualmente procura-se dotar a cabeça de pés. O que nos parecia ilha, na verdade, era uma península cuja ligação com o continente (istmo) estava ocultada por nuvens.

No final dos anos de 1990, acompanhei como ouvinte um curso de especialização em psicanálise. Professores e alunos eram fascinados por Freud e Lacan, mais pelo segundo do que pelo primeiro. Fiquei impressionado com o desprezo que os lacanianos viam o corpo e, particularmente, o cérebro. Certo dia, um professor ridicularizou o neurocientista Jean-Pierre Changeux por ter ele escrito que a psicanálise lacaniana havia contribuído muito pouco para o conhecimento do cérebro. Acanhado, fiz duas perguntas ao professor: quem era Changeux e onde fica a sede do inconsciente? Ele respondeu que não sabia quem era Changeux, nem queria saber. Vinha ao caso, apenas, a ousadia dele em criticar Lacan. Quanto à segunda, disse-me que eu podia colocar o inconsciente onde bem quisesse: no joelho, no dedão do pé etc.

Nesse curso, tive a impressão de estar frequentando uma igreja em que Lacan era a divindade máxima; seus escritos, os livros canônicos; professores e alunos, seus sacerdotes. Freud e Lacan eram médicos. Contudo, o primeiro nunca perdeu de vista o corpo e a natureza. Já Lacan foi se distanciando de ambos e centrando suas reflexões em torno da palavra. Como eu já trilhava há bastante tempo a linha do paradigma da complexidade, estranhei o desconhecimento de certos autores por parte dos devotos de Lacan. Estranhei o próprio pensamento de Lacan.

Por mais que o mecanicismo ainda vigore, não se pode negar a sua crise. As neurociências têm contribuído significativamente para religar a cabeça ao pé. André Leroy-Gourhan, antropólogo estudioso dos hominídeos, escreveu que o conceito decisivo de humanidade deve mais aos pés adaptados à marcha, deixando as mãos livres durante a caminhada, do que à caixa craniana. Assim, o cérebro pôde crescer, complexificar-se e ampliar a capacidade de produzir cultura.

A discussão, hoje, situa-se no seguinte pé: o inconsciente, a consciência, a memória, a palavra são emergências do funcionamento hipercomplexo do cérebro. Este, por sua vez, tem origem natural e funciona como ligação entre natureza e cultura. Os animais contam com sistema neural, como nós. Só que a complexidade do ser humano hipertrofiou sua capacidade de produzir cultura, capacidade esta presente em graus diferentes em outros animais.

Fiquemos apenas com o caso do cérebro humano. Pelo paradigma da complexidade, o nível mais profundo situa-se na própria constituição do cérebro, campo de estudo da biologia e das neurociências. A longa história vivida pelos hominídeos no paleolítico incorporou práticas culturais que parecem inatas. Trata-se da história cultural profunda da espécie, manifestada em situações em que ela parece dispensável. Este é o campo de estudo ainda das neurociências, dos psiquiatras e dos psicanalistas que buscam um ele entre Freud e Darwin, como é o caso de Francisco Daudt. Cada sociedade produz uma cultura, que pode ser analisada pela antropologia e pela psicologia social. Por fim, cada um de nós tem sua história pessoal, que pode ser o campo da psicanálise culturalista.

Em vez de sem pé nem cabeça ou de cabeça sem pé, esta história tem pé com cabeça.

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