A Igualdade de Satisfação e as Teorias Objetivas do Bem-Estar

Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções

Capítulo VII
A teoria da igualdade segundo Ronald Dworkin – Quinta Parte

A Igualdade de Satisfação e as Teorias Objetivas do Bem-Estar

1. Igualdade de satisfação

Dando continuidade à concepção de Ronald Dworkin sobre o princípio da igualdade, para o mesmo a igualdade de bem-estar consiste em iguais quantidades ou graus de um estado de consciência.

A satisfação das pessoas, como já dito, provém da satisfação de suas preferências políticas e impessoais, bem como diretamente de suas preferências pessoais, e sua insatisfação provém das preferências políticas e impessoais frustradas. Mas as mesmas ponderações que defendem uma forma restrita de igualdade de êxito, que não leva em conta o êxito ou o fracasso na realização dessas preferências nos cálculos que ela recomenda, defendem restrições semelhantes na igualdade de satisfação.

Dworkin presume que a igualdade de satisfação, como teoria da igualdade de distribuição, afirma que se deve distribuir os recursos, na medida do possível, de modo que as pessoas sejam iguais na satisfação direta e proveniente de convicções de que suas preferências pessoais foram realizadas. Entretanto, o referido autor estabelece um primeiro argumento contra essa versão restrita da igualdade de satisfação.

O principal atrativo de uma forma restrita de igualdade de satisfação, segundo Dworkin, está na afirmação de que ela torna as pessoas iguais no que todas valorizam do mesmo modo e fundamentalmente no que diz respeito a sua posição pessoal. Mas não se pode sustentar esse atrativo, pois as pessoas difere, de fato, na importância que cada uma dá a satisfação, até no sentido mais amplo que faz desse termo a definição de estados de consciência. Quando se tornam iguais em um aspecto, tornam-se desiguais em outros aspectos que muitos valorizam mais.

Para quase todos, o sofrimento ou a insatisfação é um mal e torna a vida menos desejável e valiosa. Para quase todos, o prazer ou a satisfação de alguma outra forma tem valor e contribui para o desejo de viver. Os estados de consciência de algumas dessas formas, positivos ou negativos, figuram como componentes da concepção da vida boa de todos, mas somente como componentes, porque quase ninguém procura apenas a satisfação ou sacrifica outra coisa a que dê valor para evitar um sofrimento de pequena monta. E cada pessoa atribui pesos diferentes até a esses estados de consciência. Dois pesquisadores, por exemplo, podem valorizar o trabalho criativo, mas um pode estar disposto a abrir mão de um quinhão maior de prazer social ou dos prazeres da fama, ou da satisfação oriunda do término de uma pesquisa bem-feita, para fazer trabalhos que sejam de fato mais originais.

Mesmo quando o que temos ou o que fazemos nos dá prazer, costumamos ter esse prazer porque lhe damos valor, e não o contrário. E às vezes escolhemos, da mesma maneira, embora não no mesmo grau impressionante que o pesquisador mais ambicioso, uma vida que acreditamos virá a trazer menos satisfação porque é, em outros aspectos, uma vida melhor para se viver.

2. Teorias objetivas do bem-estar

As concepções de igualdade de bem-estar até aqui analisadas são subjetivas no seguinte sentido. Podem ser aplicadas sem que se pergunte se está correta a avaliação consistente e informada da própria pessoa de até que ponto satisfaz o padrão estipulado de bem-estar. É claro que os argumentos favoráveis a escolher uma ou outra concepção de igualdade de bem-estar podem presumir que as pessoas estão erradas no que acreditam ser importante, ou mesmo no que considerariam importante se estivessem bem informadas quanto aos fatos pertinentes.

A igualdade de êxito total, conforme analisamos também é subjetiva da mesma forma. Pretende equiparar as pessoas (como devemos agora dizer) na quantidade ou no grau em que cada pessoa poderia razoavelmente lamentar não estar levando a vida que consideraria uma vida de maior valor. É verdade que esse juízo é, em certos aspectos, não-subjetivo.

Entretanto, Dworkin destaca uma versão da igualdade de êxito total que é mais objetiva exatamente neste aspecto. Para ele, alguém pode propor que as pessoas se tornem iguais na quantidade de lástima que deveriam ter com relação a sua vida atual. Nesse teste revisto, as autoridade deveriam perguntar se está errado alguém que, de fato, não dá valor à amizade, por exemplo, e acredita nisso apesar de estar consciente do consolo e da alegria que outras pessoas encontram na amizade. Nesse caso, deve-se transferir recursos para essa pessoa, diretamente ou por meio de uma educação especial acerca dos valores da amizade, em função de seu êxito total baixo, mesmo que ele o considera alto, pelo menos até antes da educação especial.

Para Dworkin, não precisamos analisar essas objeções, pois essa versão mais objetiva da igualdade de êxito total vai ao encontro do mesmo argumento que foi usado contra a versão mais subjetiva. Qualquer teste pertinente sobre o que alguém deveria lamentar na vida que está, de fato, levando, mesmo na melhor teoria, em vez da sua própria, acerca do que dá valor à vida, deve apoiar-se em assunções sobre quais recursos um indivíduo tem o direito de ter à disposição ao levar qualquer tipo de vida. Portanto, a versão objetiva, assim como a subjetiva, deve presumir uma teoria independente da distribuição, e não tem mais poder de justificar o fato de dar às pessoas mais ou menos do que elas têm direito segundo aquela teoria. Ambas as versões destroem a si mesmas na medida em que recomendam quaisquer mudanças em uma distribuição independente, estando essa sob uma teoria da distribuição que se tenha demonstrado justa.

Dworkin ainda menciona aquele que ele denomina de “putativa” (suposta, julgada, situação anterior que leva crer no fato, no que parece) concepção de igualdade de bem-estar que também se poderia considerar objetiva. Ela supõe que o bem-estar consiste nos recursos disponíveis para a pessoa, amplamente concebidos, de modo que inclua competência física e mental, a educação e as oportunidades, bem como os recursos materiais; ou, em algumas versões mais estritas, de modo que inclua apenas aqueles recursos que sejam de fato os mais importantes, independente do que as pessoas pensam a respeito. Afirma que duas pessoas ocupam o mesmo nível de bem-estar quando ambas são saudáveis, estão em pleno gozo das faculdade mentais, são bem-educadas e igualmente prósperas, embora insatisfeitas por algum motivo, e ainda que uma dê muito menos valor a esses recursos do que a outra. Essa é uma teoria objetiva no sentido que se recusar aceitar o juízo da própria pessoa com relação a seu bem-estar, mas, pelo contrário, insiste que seu bem-estar é definido pelo menos por certos tipos de recursos básicos a sua disposição.

A igualdade de bem-estar, assim interpretada, só requer que as pessoas sejam iguais nos recursos designados. Essa versão da igualdade de bem-estar não é, portanto, diferente da igualdade de recursos, ou pelo menos da igualdade em alguns recursos. É antes uma afirmação da igualdade de recursos na linguagem (enganosa) do bem-estar.

Talvez só se possa considerar com justiça o ideal de igualdade de bem-estar tratando as diversas versões restritas e irrestritas da igualdade de êxito e da igualdade de satisfação como fios a serem considerados em um conjunto complexo, e não como teorias isoladas.

É claro que é desejável, pelo menos até certo ponto, que se aumente o êxito total das pessoas, embora os filósofos e os políticos possam discordar se as versões subjetiva e objetiva dessa meta devam ser as referências quando as duas entram em conflito. Porém, pelos motivos explicados, nenhuma versão consegue oferecer nada além de um princípio de igualdade de distribuição contraproducente ou ocioso. Nem, pelos mesmos motivos, pode nenhuma delas figurar como componentes úteis de um conjunto complexo de concepções de igualdade de bem-estar. Na medida em que a igualdade de êxito total figurasse, mesmo como um componente entre vários, figuraria porque se supôs algum teste independente da justa distribuição, e não poderia recomendar, nem poderia o conjunto total, qualquer desvio daquele teste independente.

A igualdade de bem-estar parece recomendar que aqueles que gostam de champanhe, que precisam de renda mais alta simplesmente para alcançar o mesmo nível de bem-estar que os gostos menos dispendiosos, deviam ter uma renda maior por isso. No entanto isso parece contra-intuitivo, sendo que, conforme já dito por Dworkin, alguém que se sentisse atraído para o ideal desejaria, não obstante, limitá-lo ou qualificá-lo de modo que sua teoria não tivesse tal consequência.

Imaginemos que determinada sociedade tenha conseguido alcançar a igualdade de bem-estar em alguma concepção escolhida de tal ideal. Suponhamos também que a alcançou por meio de uma distribuição que de fato (talvez apenas por coincidência) proporciona riquezas iguais a todos. Agora imaginemos que alguém (Louis) resolva, deliberadamente, cultivar algum gosto ou aspiração que ainda não tem, mas que será dispendioso porque, ao cultivá-lo, não terá tanto bem-estar na concepção escolhida quanto tinha antes, a menos que sua riqueza aumente. Esses novos gostos podem ser em alimentos e bebidas. Ou podem ser (o que é mais plausível) gostos por esportes, como o esqui, com os quais se tem prazer depois de adquirir um pouco de prática; ou pela ópera; ou por uma vida dedicada à arte criativa ou à exploração ou á política. Seria possível negar a Louis os recursos extras, tirados dos que têm gostos menos dispendiosos (ou simplesmente mantendo os que já têm), sem contradizer o ideal da igualdade de bem-estar que sua comunidade abraçou?

Não há dúvida de que as pessoas adquirem novos gostos de maneira negligente ou por vaidade, sem considerar se será realmente melhor para elas adquirir esses gostos, ou mesmo de maneira perversa, sabendo que será pior. Mesmo quando acham que será melhor, podem estar enganados. No entanto, Dworkin supõe que Louis está agindo de maneira deliberada, e não inadvertida, mas também está agindo com base no tipo de juízo que as pessoas sempre fazem quando adquirem gostos ou quando os modificam. Ele está tentando melhorar a vida de alguma forma. Isso não torna sua pretensão por recursos extras mais atraente do que a de alguém que faz uma experiência cada por capricho, pelo prazer do momento, e depois percebe que está viciado.

Louis terá, é claro, ideias próprias sobre o que torna a vida melhor, sobre onde está seu próprio bem-estar essencial. Se, porém, sua sociedade escolheu uma das diversas concepções de bem-estar, como a do êxito ou da satisfação relativa, como o bem-estar em que as pessoas devem igualar-se, então Louis não pode achar que seu próprio bem-estar consiste no grau máximo de bem-estar nessa concepção. Caso achasse, seu comportamento não faria sentido. Isso significa que uma descrição possivelmente atraente do que ele fez deve estar errada. Muita gente, ao ouvir essa história pela primeira vez, pode supor que Louis cultiva gostos dispendiosos para levar vantagem sobre os outros, de modo que “recompensasse” esforços não apropriados se ele tivesse de receber uma renda maior. Mas, se levar vantagem significa adquirir mais bem-estar do que os outros na concepção escolhida, então isso é impossível.

Louis acha que sua vida seria mais bem-sucedida no todo – daria menos razão para lástima – se tivesse o gosto ou aspiração dispendiosa, mas mesmo que custasse pouco ao bem-estar na concepção escolhida ele perderia se a sociedade restabelecesse para ele a igualdade naquela concepção. De fato, ele poderia pensar que sua vida seria mais bem-sucedida no cômputo geral mesmo que a sociedade não lhe restabelecesse a igualdade. (As pessoas adquirem gostos dispendiosos mesmo na nossa própria sociedade, quando arcam sozinhas com as despesas adicionais.)

Essa explicação do comportamento de Louis refuta a importância da distinção que presumimos até aqui, entre os gostos dispendiosos de cultivo deliberado e outros aspectos da personalidade ou da pessoa, tais como desejos inatos ou gostos socialmente impostos, que afetem o bem-estar das pessoas, pois a explicação afirma que tais gostos são quase sempre cultivados em decorrência de convicções – convicções sobre que tipo de vida é mais bem-sucedida no total – e tais convicções não são, em si, cultivadas, mas escolhidas.

As pessoas raciocinam sobre suas teorias a respeito do que valoriza a vida, mais ou menos da mesma maneira que raciocinam sobre outros tipos de convicções. Mas não decidem que uma vida a serviço de outros, por exemplo, uma vida de arte criativa ou estudo, ou uma vida de gostos refinados, seja o tipo mais valioso de vida para viver e, portanto, não decidem que devem acreditar que assim seja. Podemos ainda distinguir entre a decisão voluntária que alguém faz de tornar-se uma pessoa com certos gostos, ou de levar o tipo de vida com probabilidade de ter tal consequência, e sua descoberta dos gostos e aspirações que ela simplesmente tem. Porém a distinção é menos importante do que às vezes se pensa, porque essa decisão é poucas vezes integralmente voluntária.

Se a sociedade de Louis pretendesse igualar as pessoas, não em uma das distintas concepções de bem-estar que presumimos até este ponto na sua história, tais como a satisfação ou o êxito relativo, mas no êxito total subjetivo, então nós precisaríamos de uma teoria um tanto diferente para o motivo por que ele adquiriria gostos dispendiosos, e para justificar se seria justo negar-lhe os recursos extras.

Suponhamos que, antes de ter ideia de seu gosto dispendioso, Louis estivesse satisfeito com o fato de sua vida ter um êxito total razoavelmente igual ao de todas as outras pessoas. Ele passou, então, a acreditar que sua vida teria mais valor se praticasse algum hobby caro, por exemplo. Devemos perguntar o que ele agora acha do valor da vida que tinha antes dessa convicção. Ele pode achar que, embora sua vida anterior fosse tão boa quanto ele pensava, e continuaria assim se ele pudesse não praticar o novo hobby, seria muito melhor se o praticasse. Nesse caso, não ocorre o problema dos gostos dispendiosos, pois Louis está reivindicando recursos adicionais para ter mais bem-estar que os outros na concepção escolhida, e ele não fez jus a isso. No entanto, ele pode, pelo contrário, ter mudado de convicção acerca do valor de sua vida anterior. Pode ter lido mais, ou refletido mais, e chegado à conclusão de que sua vida anterior, com toda a atratividade que exercia sobre ele, era de fato uma vida sem valor e insípida. Ele que cultivar gostos novos e mais desafiadores para reparar os defeitos de sua vida, segundo seu entendimento atual. Só pede os recursos necessários para tornar sua vida tão valiosa a seus olhos, depois que foram abertos, quanto a de outras pessoas segundo elas mesmas.

Se a concepção escolhida for uma das distintas concepções que analisamos, e não a do êxito total, então Louis está tentando aumentar seu bem-estar em alguma outra concepção para a qual dê mais valor, embora conservando a igualdade na concepção escolhida. Mas se a concepção escolhida for a que realmente importa para a igualdade, e se de qualquer forma os outros talvez já possuam mais bem-estar na concepção preferida por Louis, que fundamento tem a sociedade para agora recusar-lhe a igualdade na concepção escolhida? Se a concepção escolhida for a do êxito total (que se supõe, à guisa de argumentação, não ser contraproducente), então se surgir alguma pretensão de recursos extras, surge porque Louis agora crê que a distribuição anterior se fundamentava em um erro. Ele não pede vantagem especial, mas apenas que a sociedade atinja a distribuição que teria atingido se ele tivesse sido capaz de enxergar antes com mais clareza. Em que poderia a sociedade se basear para lhe negar isso?

Talvez um fundamento se insinue por si, que é o princípio utilitarista comum de que a média de bem-estar na sociedade (que devemos entender por bem-estar na concepção escolhida) deve ser a maior possível. Se a sociedade “recompensa” pessoas que adquirem gostos dispendiosos dando-lhes recursos extras com os quais elas satisfazem esses gostos, então as pessoas não serão desencorajadas de fazê-lo. No entanto, os gostos dispendiosos (por definição) reduzem o bem-estar total que se pode produzir com determinado estoque de recursos. Assim, o principio independente de utilidade justifica um compromisso com o princípio da igualdade de bem-estar se adquirirem gostos dispendiosos, para não incentivá-las a fazê-lo. Se a concepção escolhida for a concepção distinta, isso significa que as pessoas devem ser desencorajadas, em benefício da utilidade média, de trazer à tona que precisarão de mais recursos para atingir o mesmo bem-estar, embora possam pensar que sua vida teria mais êxito se o trouxessem. Se a concepção escolhida for a do êxito total subjetivamente julgado, deve-se, então, desencorajar nas pessoas o reexame de suas vidas de modo que possa deixá-las insatisfeitas com o valor da vida que tem.

Os gostos dispendiosos são constrangedores para a teoria de que a igualdade significa a igualdade de bem-estar precisamente porque acreditamos que essa igualdade, considerada em si e fora das questões de eficiência, condena, em vez de recomendar, a compensação por gostos dispendiosos deliberadamente cultivados.

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