A espécie humana ameaçada

Uma informação básica publicada pela Agência Internacional de Energia (AIE) passou totalmente despercebida: o pico do petróleo ocorreu em 2006. Enquanto a demanda global continuará a crescer com a ascensão dos países emergentes (China, Índia e Brasil), a produção de petróleo convencional vai experimentar um declínio inexorável depois de ter alcançado seu pico. A crise econômica esconde por ora essa realidade.

Mas os fatos surgirão com o retorno do crescimento. O aumento dos custos de exploração e produção fará surgir tensões extremamente agudas. A exploração de carvão e de reservas fósseis não-convencionais exigirá investimentos substanciais e progressivos que não vão reduzir o aperto causado pelos preços num horizonte de tempo próximo. Os preços da energia vão produzir inquietação.

O silêncio e a ignorância de grande parte da classe política sobre este assunto são muito pouco animadores. E isto sem ter em conta o fato que temos lançado e continuaremos a dissipar na atmosfera o dióxido de carbono armazenado por milênios ... Choques do petróleo repetidos até o colapso e risco climático. Eis, então, o que nos preparam os autores de estratégias de miopia. O desastre de Fukushima aumenta o peso de outro paradigma energético.

Essas observações sempre geram grandes mal entendidos. As objeções diagnosticam e denunciam os profetas da desgraça como um sintoma de uma sociedade em declínio, que já não acredita no progresso. Essas estratégias de delírio são absurdas. Dizer que nossa época é caracterizada por uma "epistemofobia" ou da pesquisa de "risco zero" é um grave erro de análise que esconde por atrás das reações aos processos de adaptação a causa da convulsão.

O que muda radicalmente o assunto é que nossa vulnerabilidade é agora proveniente do incrível alcance do nosso poder. O "indisponível" à ação dos homens, o terço intocável, é agora alterável, seja por meio de ação coletiva (o nosso consumo combinado), seja por um único indivíduo (os "biohackers). Nossas democracias se veem impotentes diante de dois aspectos que tornamos disponíveis: a interferência com os mecanismos de regulação da biosfera e os substratos biológicos da condição humana.

Esta situação faz surgir "o espectro ameaçador da tirania", mencionado pelo filósofo alemão Hans Jonas. Visto que nossas democracias não foram capazes de se proteger de seus próprios excessos, correm o risco de cair em um estado de emergência e de ceder a abusos totalitários.

Tomemos o exemplo da controvérsia sobre o clima. Tal como demonstrado pela comparação entre os estudos da historiadora das ciências, Naomi Oreskes, com aqueles do cientista político Jules Boykoff, as evoluções do sistema de comunicação desempenham neste caso um papel importante. Enquanto que a primeira não descreve qualquer contestação direta à origem antrópica do aquecimento global nas revistas científicas, o segundo constatou que durante o período do estudo, 53% dos artigos de consumo do grande público na imprensa dos EUA questionaram as conclusões científicas.

Esta discrepância é explicada pela substituição das razões de informações precisas por um desejo de acalentar o gosto pelo espetáculo. Os temas científicos complexos são tratados de forma simplista (a favor ou contra). Isto explica em parte os resultados do estudo da Agência de Gestão Ambiental e da Energia (ADEME), dirigida por Daniel Boy, sobre as representações sociais do efeito estufa mostrando uma queda significativa no percentual de franceses que atribuem as perturbações climáticas às atividades humanas (65% em 2010 contra 81% em 2009). Essas variações que criam dúvida e ceticismo no seio da população permitem que os atuais líderes, cuja falta de conhecimento científico é alarmante, justifiquem sua inação.

A Cúpula de Cancun salvou o processo de negociação, ao incorporar os grandes países emergentes. Mas os acordos de controle à altura do objetivo dos demais ainda estão longe. Se assim é, é porque os governantes do planeta (com a notável exceção de uns poucos) decidiram negar as descobertas científicas para se liberarem da amplitude das responsabilidades que estão em jogo. Como poderiam eles acreditar no desastre e não fazer nada, ou muito pouco, para evitá-lo?

Presa às questões eleitorais de curto prazo e ao tempo na mídia, a política tem gradualmente se transformado em gestão das questões imediatas. Ela tornou-se incapaz de pensar no longo prazo. No entanto, a crise ambiental torna-se uma percepção de progresso onde o tempo está do nosso lado. Já que nós criamos os meios para a redução da vida na Terra e que negamos a possibilidade da catástrofe, nós a tornamos possível.

É impossível saber o ponto final de inflexão na direção do improvável; no entanto, é certo que o risco de sua ultrapassagem é inversamente proporcional à velocidade de nossa reação. Nós não podemos esperar e tergiversar sobre a controversia climática até seu ponto de inflexão, o momento em que o aumento dos desastres naturais vai dissipar o que ainda resta de dúvida. Então será tarde demais. Quando os oceanos estiverem aquecidos, não teremos meios para resfriá-los.

A democracia será a primeira vítima da alteração das condições universais da existência que estamos programando. Os desastres ambientais que se preparam em escala global num contexto de crescimento populacional, as desigualdades provocadas pela escassez local de água, o fim da energia barata, o esgotamento de muitos minerais, a degradação da biodiversidade, a degradação e a erosão dos solos, os fenômenos climáticos extremos... produzirão as piores desigualdades entre os que têm os meios para protegerem-se, por um tempo, e aqueles que serão suas vítimas. O equilíbrio geopolítico será eliminado e isto será fonte de conflito.

A magnitude dos desastres sociais que isto pode causar levou, no passado, ao desaparecimento de sociedades inteiras. Isto, infelizmente, é uma realidade histórica objetiva. A isto adicione o fato de que as novas tecnologias produzirão, cada vez mais facilmente, armas de destruição em massa ao alcance de todos os orçamentos e dos espíritos mais atormentados.

Então, o colapso de nossa espécie aparecerá como uma possibilidade visível, enquanto que a urgência que vai tornar nossos processos de deliberação lentos e complexos. Tomado pelo pânico, o Ocidente irá transgredir seus valores de liberdade e justiça. Para se confrontarem com os limites físicos, as empresas serão entregues à violência dos homens. Ninguém poderá negar, a priori, o risco de as democracias desaparecerem sob tais ameaças.

A etapa final será a auto-destruição da vida humana, seja fisicamente ou através de alterações biológicas. O processo de convergência das novas tecnologias dará ao indivíduo poderes monstruosos capazes de dar origem a sub-espécies. A uniformidade do gênero humano será golpeada. E isto não é o futuro, trata-se do presente. O cyborg não será apenas mais uma figura de estilo cinematográfico, mas uma realidade de laboratório que se tornou possível graças a fundos públicos, usados para associar células neuronais humanas com dispositivos artificiais.

A ideologia do progresso fracassou. As desigualdades globais atuais fizeram ecoar a vergonha dos autores do projeto moderno, Bacon, Descartes e Hegel. Na época do Iluminismo, não havia nenhuma região do mundo, fora dos povos vernaculares, onde a riqueza media per capita fosse o dobro de uma outra. Hoje, a proporção alcança 1 para 428 (entre o Zimbabue e o Qatar).

Os fracassos reiterados das conferências da ONU mostram que estamos longe de unir as nações contra as ameaças e de superar os interesses imediatos e egoístas dos estados e dos indivíduos. As questões, tanto quanto à governança nacional e internacional, quanto para o futuro macroeconômico, visam nos liberar do culto da competitividade, do crescimento que nos amedronta e da civilização que se alimenta da pobreza no meio de resíduos.

O novo paradigma deve emergir. Os perfis conceituais estão presentes, seja nos valiosos trabalhos do britânico Tim Jackson ou nos do Prêmio Nobel de Economia de 2009, a americana Elinor Ostrom, e em várias iniciativas da sociedade civil.

Nossas democracias devem se reestruturar, democratizar a cultura científica e controlar o imediatismo que contradiz a consideração do longo prazo. Nós ainda podemos transformar a ameaça em promessa desejável e merecedora de crédito. Mas se não agirmos rapidamente, certamente iremos nos expor à barbárie.

Por esta razão, responder à crise ambiental é dever moral absoluto. Os inimigos da democracia são aqueles que procrastinam as respostas às questões e desafios da ecologia.

Michel Rocard, Dominique Bourg e Floran Augagneur

Michel Rocard, ex-primeiro ministro da França, co-autor com Alain Juppé de "A política tal como ela morre por não ser" (JC Lattes, 314 p., 18 €).

Dominique Bourg, professor da Faculdade de Geociências e Meio Ambiente da Universidade de Lausanne, membro da Vigilância Ambiental da Fondation Nicolas Hulot

Floran Augagneur, filósofo. Leciona filosofia da ecologia no Instituto de Estudos Políticos de Paris

Artigo publicado na edição de 03/04/11

Tradução: Argemiro Pertence

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