Entrevista: Waldir Tavares - um autêntico representante da classe operária


Fotos do repórter fotográfico Lívio Campos - especial para O Rebate

Waldir Tavares: operário, ferroviário, militante comunista, ex-preso político, incansável lutador popular. Próximo de completar 80 anos de idade, aproximadamente 60 de militância revolucionária, Waldir nos falou longamente sobre essa trajetória. Marcada por intensas voltas e reviravoltas de agudas e tormentosas lutas entre linhas opostas no seio do movimento comunista de nosso país esses acontecimentos eram também reflexos diretos de uma mais contundente e inconciliável luta no movimento comunista internacional.

Publicamos a seguir os principais trechos da entrevista.

Nasci em Macaé, Norte Fluminense, em 18 de abril de 1930. Sou filho de um ferroviário e uma camponesa. Vejam que desde aí já vem a mistura que forma a nossa aliança... [operário-camponesa]

Estudei no Liceu Operário. Era uma escola anexa às oficinas dos trens, controladas pelos ingleses. Hoje compreendo que aquele sistema era para escravizar gerações inteiras de operários. As pessoas já saíam da escola direto para a oficina, comiam lá, enfrentavam situações precárias de trabalho, saíam de lá tuberculosas... o sistema era para explorar a longo tempo.

Essa exploração só teve uma vantagem: formou grandes líderes da classe operária. Companheiros muito bons. Chamavam Macaé de "Moscouzinho".

O ingresso no Partido Comunista do Brasil

Em novembro de 1951, fui trabalhar como guarda-freio. Comecei a entrar em contato com o pessoal, conheci o Aristóteles de Miranda, um grande camarada, que me emprestou um livro. Só acho que ele começou pelo fim, entendi muito pouco daquilo tudo, só com o tempo e a militância fui compreender o que era o marxismo. Depois, já em 1952 ele me passou uns jornais, literatura partidária. Foi quando ele me convidou para uma reunião clandestina. Eu me lembro que perguntei onde seria a tal reunião e ele respondeu: "como quer saber se é clandestina?" (risos). Combinamos um lugar e de lá fomos até um local que, claro, eu não conhecia. Assisti a reunião e comecei a atuar no PCB (Partido Comunista do Brasil). E até agora, conversando com vocês nesse momento, não parei mais.

A luta contra o liquidacionismo

Vivi muitas lutas com os camaradas. Participei de muitas batalhas, desde o combate à   tentativa de liquidação do partido com o Agildo Barata1 nos anos de 1950. Nessa época, ocorreu uma greve nos trens. Sustentei com os companheiros a posição mais combativa até o fim e parou tudo. Talvez por essa firmeza, pensavam que eu fosse uma pessoa influente. Então o Agildo veio ter comigo. Ele sustentava a posição de que não precisava de partido, me passou uns papéis defendendo essas idéias. Procurei os camaradas e esclareci que foi ele quem me procurou e que minha opinião era a de que o partido era uma necessidade, que a vida e a história já tinham provado isso.

Hoje, lendo a Carta Chinesa2 , podemos ver a justeza das posições do Partido Comunista da China, do camarada Mao Tsetung e dos dirigentes comunistas chineses sobre o revisionismo, ele realmente é um grande perigo que deve ser duramente combatido. Nós defendemos a linha revolucionária, nos fortalecemos nessa luta e fortalecemos com isso o partido.

Contra a "Declaração de março de 1958"

Depois veio à tona a declaração de março de 1958. Os dirigentes oportunistas do PCB decidiram que aquela era a linha, de transição pacífica...

Foi quando o Grabois veio a Macaé, aqui mesmo nessa casa, discutir aquelas posições que A Nova Democracia publicou na edição passada com o "Duas concepções, duas orientações políticas". Com o suporte do camarada Grabois nós resistimos. Eu, Cantídio, que era analfabeto, ferroviário, um exemplo de militante, Nestor "Fundão ", Elias Simões, Otávio Corrêa Filho, referência de firmeza e combatividade. Ficamos nós contra duzentos dos que defendiam a declaração.

Em defesa do partido revolucionário

A luta recrudesceu ainda mais e fomos para São Paulo levantar a bandeira. Fomos eu e o camarada Sarmé , um antigo militante ferroviário, defender a posição que acreditávamos ser a correta e revolucionária. Quando chegamos no Ipiranga nos dirigimos para uma casinha pequena, modesta. Lá assinamos aquele documento que ficou conhecido como a Carta dos 1003 em defesa do partido. De lá, saímos com uma posição delineada: a luta armada como caminho para a libertação do nosso povo, para alcançar o socialismo.

Como ensinou o presidente Mao Tsetung, aquela declaração de março significou uma derrota temporária da linha revolucionária no seio do partido. O camarada Mao Tsetung afirmava que a nossa luta é assim: lutar, fracassar, lutar... até a vitória.

A reconstrução do partido

Em 1962, junto com outros camaradas, decidimos abraçar a linha defendida pelo Grabois, Pedro Pomar, Lincoln Oest e reconstruímos o partido como PCdoB. Quando recordo do processo, vejo claramente como se deram as lutas. Meses atrás procurei alguns camaradas que participaram daquela ruptura em 1962 conosco. Do mesmo modo que discutimos a necessidade da ruptura com o oportunismo do PCB naquela época, expliquei que esse pecedobe de hoje não vale nada. Eles disseram: "estamos com você". Assim prosseguimos na luta, construindo um núcleo classista da Liga Operária aqui no Norte Fluminense, contando com a participação de antigos e provados companheiros. Com esse trabalho, vários companheiros têm redescoberto o caminho da luta revolucionária.

A Prisão

Depois do golpe militar de 1964, invadiram a minha casa. Minha companheira resistiu e eu me retirei pelos fundos da casa. Minha filha estava prestes a nascer.

[Nesse instante a sra. Joselita, companheira de Waldir há mais de 63 anos, que até então estava em silêncio acompanhando a entrevista se anima e relembra a história emendando:]

Na segunda vez que a polícia bateu aqui ele estava dando banho na menina. Foram os vizinhos que ajudaram ele a sair.

[Waldir completou contando que saltou o muro para o quintal vizinho, onde foi acolhido até que os policiais se retirassem e ele pudesse "sumir". Animado ele continua:]

Em junho de 1964, vários companheiros operários de Macaé foram processados. Alguns foram presos, inclusive eu. Chegaram aqui em casa numa tarde com metralhadoras e aquela cena toda. Minha irmã me abraçou temendo que eles me matassem. Durante minha prisão, eles sequer me tocaram.

Já em 1967, fui a julgamento juntamente com dois outros companheiros de outras organizações. Fizeram uma carga pesadíssima sobre meu processo. O juiz militar disse: "Esse aí é da linha chinesa". Não deu outra: fomos condenados a um ano de reclusão.

Nos meteram no meio da bandidagem em uma carceragem no Rio de Janeiro. Pouco depois fomos transferidos para a cadeia de Macaé. Aqui sofremos todo tipo de tortura psicológica. Um delegado vinha e falava que iríamos sair para "passear", tentando nos intimidar. Eles queriam nos arrebentar mas não podiam, porque recebíamos em média 50 visitas por dia. Eu particularmente não fui torturado fisicamente, talvez porque eles temessem uma reação do povo aqui se algo me acontecesse, mas tive companheiros torturados e mortos.

O Araguaia

A direção do PCdoB não levou a discussão do Araguaia às bases do partido. Mas foi um episódio heróico, inesquecível. O Grabois era um grande comandante, e assim foi até o fim. A única vez que ele veio aqui em Macaé me causou uma forte impressão. Levei ele até uma ferraria para conversar com os operários e ele entendia das coisas, conhecia o ofício de ferreiro e queria saber de tudo. Ele era também um grande orador e um datilógrafo veloz. Era um dirigente de verdade: inteligente e simples. Perder quadros como os do Araguaia foi um golpe rude. O Pedro Pomar, um homem bravo, firme, o Lincoln Oest, que também veio aqui uma vez.

[Dona Joselita se recorda do dirigente comunista em sua passagem por Macaé:]

O Oest veio aqui sim, muito simpático, me deu um vaso com uma planta que ficou aqui muito tempo.

Ruptura com o pecedobe de Amazonas

Em 1990, por aí, as divergências eram muitas e profundas. Acabaram por me expulsar do PCdoB. A sede do partido era aqui nessa casa, que eu havia cedido para as nossas atividades. Em uma reunião, uma mulher, de quem eu sequer recordo o nome, pediu a palavra e disse que eu estava "tumultuando as coisas". Eu rebati, disse que estava era contestando a linha. Ela falou que era melhor eu "me retirar". Perguntei se estava sendo expulso e que isso fosse registrado. Saí e não voltei mais.

Formado em direito

Aos 46 anos, eu já era avô, fui estudar direito. Eu não encontrava trabalho, não me deixavam mais ser padeiro, ferroviário, vendedor de livros, nada. Sou "bicampeão" de dispensa na rede ferroviária por motivos políticos. Assim o direito surgiu na minha vida.

Meu desejo era ser advogado do trabalho, mas nunca fiz uma audiência sequer. Quando vi como funcionavam as coisas, os "acordos" lesivos aos trabalhadores, os juízes que saíam com os bolsos cheios de dinheiro, os advogados que iam enriquecendo a cada derrota dos trabalhadores, enquanto os companheiros eram descaradamente roubados, decidi que não queria saber disso.

Em Macaé há mais de 150 casos de companheiros perseguidos no período do golpe militar. Alguns eram comunistas, outros simples operários, outros parentes e conhecidos de militantes. Naquele período, ser parente de comunista também era crime de Estado. Hoje eu auxilio essas pessoas juridicamente e não cobro nada. Meu acordo com o pessoal anistiado é que para cada vitória, eles retirem mil reais e doem para a luta.

Remendo de Anistia

A Lei de anistia de 1979 não representa nada. O que foi feito em favor dos anistiados deveu-se ao empenho das comissões de companheiros que acompanhavam todos os tribunais e denunciavam na cara deles as prisões e as torturas. As famílias sofreram perseguição e sofrem até hoje.

Nós mostramos os fatos, as pessoas torturadas, as marcas da tortura. O Maurício Azedo, que hoje está na ABI — Associação Brasileira de Imprensa, cumpriu um papel importantíssimo. Ele denunciou com firmeza e defendeu os ex-presos e torturados politicamente, refutando as evasivas dos militares que diziam "não existir provas de tortura". Ele bateu na mesa e atacou os torturadores com coragem.

A anistia foi um remendo. Lutaremos até o fim para que todo o processo seja público e que os culpados sejam revelados, punidos.

Brilhantes perspectivas

Hoje vemos de forma muito mais clara a luta. E a luta se desenvolve de forma mais profunda também. Aqui temos construído um núcleo classista, o mesmo se dá em outras partes. Vemos um movimento vigoroso, a luta dos camponeses. Vemos companheiros como o José Maria, que transborda vigor como um jovem, um militante valoroso daqueles, naquela entrevista para A Nova Democracia, servindo de exemplo para tantos jovens. Vemos o Alípio de Freitas, que também deu aquela entrevista para vocês, o Alípio que eu pude ver ainda jovem, saber que ele está vivo e lutando, firme, é muito bom. Todas essas lutas que vocês divulgam, na Índia e em outras partes.

Depois que pude estudar o desenvolvimento da história, o desenvolvimento da humanidade e do pensamento do homem, passando por todas as escolas de pensamento, só assim posso criticar o idealismo de pensar e fazer um homem novo e uma sociedade justa sem haver uma revolução. Somente o comunismo, o socialismo científico, é o verdadeiro. Tentam inventar um socialismo do século XXI, mas só existe o socialismo científico e pronto, acabou.

Agora vivemos um momento diferente. Eu dizia a um companheiro em um passado não muito distante que se não ocorrer algum desastre e as coisas marcharem como estão, agora a coisa vai. Até o fim!

"Eu digo: Revolução!"

A luta é essa. É preciso ter clareza das coisas e disposição para arcar com o que se faz, e sempre dizer o que deve ser dito, com os termos certos.

Quando eu penso em dizer eu, eu digo: Nós.

Enquanto dizem "reforma agrária", eu digo: Revolução Agrária.

O Brecht fala "tens que progredir, mas como progredir?".

Por isso, enquanto dizem "melhorar a situação", eu digo: Revolução!

_________________________
Notas:

1 - Agildo Barata — Dirigente do PCB que na década de 1950, particularmente após o XX Congresso do PCUS (1956), passou a defender a dissolução do partido comunista numa frente democrática, influenciado pelas idéias do secretário geral do Partido Comunista dos EUA, Earl Browder quem predicava uma revisionista e fantasiosa tese de convergência entre socialismo e capitalismo.   Prestes, ao conclamar todo o partido a se unir contra o liquidacionismo de Barata, escamoteou e ocultou a verdadeira luta que se devia travar entre revisionistas e verdadeiros marxistas no partido.

2 - Conjunto de documentos da luta ideológica travada entre as direções do Partido Comunista da China - PCCh e o Partido Comunista da União Soviética — PCUS. Neles a direção revolucionária do PCCh, sob a direção de Mao Tsetung, combate as posições revisionistas assumidas pela direção do PCUS, particularmente após a realização do seu XX congresso, quando, sob a direção de Nikita Kruschov, o revisionismo contemporâneo toma de assalto a direção do partido. A Carta Chinesa foi recentemente traduzida e publicada pelo Núcleo de Estudos do Marxismo-Leninismo-Maoísmo sob o título — A Carta Chinesa — A grande batalha ideológica que o Brasil não viu — Coleção marxismo contra revisionismo nº 2, dezembro de 2003.

3 — Carta dos 100 — Documento elaborado em agosto de 1961 por dirigentes do PCB (entre eles Maurício Grabois, Pedro Pomar e outros), intitulado "Em defesa do Partido" e assinado por cem conhecidos dirigentes comunistas de todo o país, criticava a posição da direção revisionista encabeçada por Luiz Carlos Prestes, após a "Declaração de março de 1958" e do V Congresso de 1960. A direção revisionista respondeu à crítica dos marxistas-leninistas com sanções e afastamento de vários dirigentes opositores à liquidação do partido, o que aprofundou ainda mais o processo que viria a culminar com a ruptura e reconstrução do Partido Comunista do Brasil (1962) com a sigla PCdoB para diferenciar dos revisionistas. Posteriormente, após a derrota da Guerrilha do Araguaia e o "Massacre da Lapa" (1976), o partido foi liquidado enquanto partido comunista revolucionário pela direção de João Amazonas e Rabelo, dando lugar, sob a mesma sigla de PCdoB, ao atual partido revisionista que é parte do gerenciamento de Luiz Inácio a serviço da grande burguesia, do latifúndio e do imperialismo.

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