Camaleão saudita: E agora? “Jihad” na Crimeia?

À frente, a partir da esquerda: presidente do Parlamento do Povo Tártaro, Refat Chubarov;
e Sergei Aksyonov, líder da organização Unidade Russa e deputado do Parlamento da região
autônoma da Crimeia (RIA Novosti/Taras Litvinenko).

A Casa de Saud pode estar aprontando alguma na Crimeia. Pivoteêmo-nos de volta ao deserto, para ver como isso pode ser possível.

Há uma semana, o ministro da Informação e da Cultura, Abdelaziz Khoja proclamou que a Casa de Saud “renova sua firme posição de condenar o terrorismo em todas as suas formas”. Foi o preâmbulo, antes de dizer que todos os cidadãos sauditas, jihadistas ou não, abandonem a Síria. Cometeram um crime, decretou, cada dia mais perto de encontrar-se com seu Criador, o rei Abdullah, saudita.

Então, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, todos esses, tiraram seus embaixadores do Qatar, sob o pretexto de que Doha continua a apoiar “mídia hostil”, tipo Al Jazeera.

Finalmente, a Arábia Saudita declarou oficialmente que a Fraternidade Muçulmana, a Frente Al-Nusra (ramo sírio oficial da Al-Qaeda) e o Estado Islâmico do Iraque e Levante [Islamic State of Iraq and the Levant, ISIL] – jihadistas bandidos que lutam contra ambos, o governo de Assad, na Síria e o de Maliki, no Iraque – são organizações terroristas. Qualquer membro saudita de qualquer desses grupos que não esteja de volta ao Reino dentro de 15 dias, será preso por até 30 anos.

Por decreto, o ministro saudita do Interior (por via das dúvidas) também declarou terroristas os rebeldes xiitas huthis no norte do Iêmen, além de um grupo obscuro, com base na Arábia Saudita, chamado “Hezbollah Dentro do Reino”. Nenhum desses pode, sequer, manter conta no Facebook.

Implosão da petromonarquia

É de rir, essa implosão épica da primeira coleção do que o ocidente chama de “nossos filhos da puta” – as petromonarquias do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), codinome Club Contrarrevolucionário do Golfo (CCG).

Ministro do Interior saudita, príncipe Mohammed bin Nayef 
(Reuters/Hamad I Mohammed)

E, sim, rapidamente a coisa degenerou em arranca-rabo vicioso entre árabes, marca registrada. Para os qataris, por exemplo – acusados pelos sauditas de “intromissão” – quem se intromete são, de fato, os sauditas, que apoiaram o golpe militar de agosto de 2013 no Egito e são responsáveis pela confusão gigante entre os grupos que combatem na Síria. Como era de prever, magotes de jornalistas sauditas e dos Emirados deixaram os empregos em muitos veículos da mídia qatari, vários deles depois de “polidamente” convidados a sair pelo ministro saudita de Cultura e Informação.

E é ainda mais complicado. O decreto real saudita aparece depois de uma lei de contraterrorismo ultra-linha-dura, que proíbe qualquer tipo de crítica à Casa de Saud. Quer dizer: não se trata só de a Casa de Saud estar aterrorizada ante o risco de um revide interno, pelos magotes de jihadistas linha-dura, que aprimoraram seus talentos e habilidades no Levante. Estão terrificados ante qualquer coisa que se mova dentro e em volta da Arábia Saudita. Imaginem o que sentem ante o grande mundo em geral.

Estão terrificados ante os sauditas jovens e ocidentalizados, com ideias “revolucionárias”. Estão terrificados ante jihadistas freelancers. Estão terrificados ante a Fraternidade Muçulmana apoiada pelos primos dos sauditas no Qatar – os quais o ocidente (e é muito engraçado) avaliam que pratiquem um ramo “mais moderado” do wahabismo medieval. O velho emir Hamad al Thani – que recentemente se autodepôs em favor de seu filho Tamim – manipulou habilmente a Fraternidade, como principal alavanca das ambições de Doha no vasto Oriente Médio.

Para temperar o mingau saudita-qatari, só há um príncipe saudita na família real que é a favor de algum tipo de acomodação, seguindo as ordens de seus patrões excepcionalistas norte-americanos. E o herdeiro aparente, príncipe Nayef, ministro perene do Interior de 1975 a 2012, está, agora, morto.

Agora já está perfeitamente visível que Riad e Doha põem-se aos murros sobre virtualmente tudo e qualquer coisa – da Palestina e Egito à Síria. Afinal de contas, todos os grãos de areia dos desertos do sudeste da Ásia sabem que a Casa de Saud é a favor dos salafistas, enquanto a política de estado de Doha sempre foi apoiar os Irmãos da Fraternidade Muçulmana [orig. o Ikhwan].

Agora é fácil: ou você está conosco, ou você é terrorista. Ora... o governo Bush-Cheney nos EUA fez a mesma coisa, muito antes. A diferença é que, com tantos freelancers, a empresa Jihad Inc. gerou um problema monstro de Relações Públicas, e os financistas usuais do Golfo, principalmente os sauditas e os emiradistas, perderam o controle da manada.

Agora, pela nova ordem, qualquer commando, mercenário, suicida-bomba ou degolador têm de rezar pelo manual norte-americano-saudita; ou não será armado até os dentes, ou, pior, vira candidato à incineração por um míssil Hellfire, arma preferencial de Obama. O Império quer vocês, rapazes, mas vocês têm de se comportar.

Ônibus para Simferopol?

E isso, não por acaso, nos leva à Crimeia. Ouvi, de fonte saudita muito boa, que eu ficasse de olho nas maquinações da Casa de Saud na Ucrânia; eles parecem imensamente interessados no que está acontecendo ali. Acontece depois da destituição do excessivamente volátil Bandar bin Sultan, codinome Bandar Bush, de seu poleiro como comandante supremo da inteligência na guerra contra a Síria (o secretário de Estado John Kerry dos EUA teve papel crucial na queda de Bandar); da substituição de Bandar pelo ministro do Interior príncipe Mohammed bin Nayef, que é muito popular em Washington; e do “toque de recolher” dos combatentes sauditas no Levante.

Os tártaros na Crimeia são muçulmanos. Estão às vésperas de “celebrar” o 70º aniversário de sua deportação em massa, por Stalin. Voltaram à Crimeia no final dos anos 1980s, e hoje são cerca de 250 mil na Crimeia; 13% da população majoritariamente russa, com taxa de desemprego de, no mínimo, 50%.

Os tártaros da Crimeia são muçulmanos (15/4/2012)

Refat Chubarov, presidente do Parlamento, a Assembleia Nacional dos Tártaros da Crimeia, considera o referendo crimeano de 16 de março uma “ameaça” à Ucrânia. Não está promovendo uma jihad, mas, como muitos representantes tártaros, já antevê “sérias consequências” se o estatuto da Crimeia for modificado. Há provas do apoio tártaro aos neofascistas/neonazistas do tipo partidos Svoboda e Setor Direita (Pravy Sektor) em Kiev. Dessa “aliança” até a jihad, a distância é um suicida-bomba.

Aconteça o que acontecer na Crimeia, a Casa de Saud está aprontando alguma. Bandar Bush vangloriou-se para o presidente Putin de que controlava os jihadistas do Cáucaso e podia movê-los como bem entendesse. Seu sucessor bem pode sentir-se tentado a movê-los não no Cáucaso, mas por uma linha direta de ônibus, do deserto sírio para Simferopol. Que espetacular favor prestado aos patrões norte-americanos. O imperador, afinal, em breve visitará Riad.
_________________________

11/3/2014, Pepe EscobarRussia Today
Saudi chameleon: What next, jihad in Crimea?
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia TodayThe Real News Network Televison Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.

Livros:
− Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
− Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007. 
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

http://redecastorphoto.blogspot.com.br

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