Putin ganhou a Síria, Obama muda-se para o Irã

John Kerry e Sergey Lavrov numa reunião em Moscou

A euforia em torno da aprovação da resolução sobre as armas químicas sírias no Conselho de Segurança da ONU na 6ª-feira está em todas as manchetes, mas permanece no ar um pressentimento obscuro, que ameaça estragar a festa.

Sim, é verdade que, depois de um longo e tormentoso intervalo, quando nada parecia ir bem entre eles, os EUA e a Rússia concordaram, afinal, em torno de alguma coisa. Merece celebração. Mas em seguida começam a emergir indícios de que nem tudo é um mar de rosas entre os dois ministros de Relações Exteriores, John Kerry e Sergey Lavrov, e que houve momentos tensos. O déficit de confiança é palpável.

Passo potencialmente significativo

Não há dúvidas de que há no ar muita irritabilidade impaciente. O presidente Barack Obama não voltou a dizer palavra ao presidente Vladimir Putin da Rússia, depois da conversa de 20 minutos durante a reunião do G-20 em São Petersburgo, há quase um mês.

Barack Obama e Vladimir Putin 

Na fala do sábado, Obama soou estranhamento modesto. Faltava eloquência. O que ele compreendera da resolução teve de ser explicado por Lavrov, no dia seguinte, falando à televisão estatal russa.

Obama entendera que a resolução “é legalmente vinculante, será aplicável e fiscalizável e haverá consequências para a Síria se não cumprir o que foi acordado” e, por isso entendera que a resolução “vai além, de fato, do que se poderia obter mediante ação militar”.

Obama disse que a resolução é “endosso explícito” do processo de Genebra sobre a Síria. E que estava “muito esperançoso” quanto às possibilidades. Mas, imediatamente, se manifestou preocupado com “se a Síria cumprirá todos os compromissos” e reconheceu “preocupações legítimas” com a implementação da resolução em condições de guerra civil.

Mas, tudo considerado, Obama cautelosamente avalia que a resolução do Conselho de Segurança “representa passo potencialmente significativo”. Mas estava ali, potencialmente inaudível, o seu suspiro de alívio por não ser necessária qualquer ação militar contra a Síria – pelo menos por hora.

A reticência de Obama contrasta com o tom triunfalista com que Lavrov anunciou a resolução como vitória da diplomacia russa, e que “não foi fácil”. Lavrov listou os ganhos:

· a Rússia garantiu que os especialistas da Organização para Proibição de Armas Químicas continuem a ser os principais atores na implementação da resolução, não o Conselho de Segurança da ONU;
· a Rússia “alcançou seu objetivo” de assegurar que não restem “pretextos ou acrobacias” que levem ao uso da força, considerando a experiência líbia e as “capacidades de nossos parceiros para interpretar resoluções do Conselho de Segurança da ONU”.
· Qualquer ataque militar contra a Síria, no âmbito da resolução “está fora de questão”.
· Enquanto Obama põe o ônus da implantação da resolução sobre os ombros do presidente Bashar Al-Assad e seu governo, Lavrov chama a atenção para a responsabilidade que cabe aos mentores e patrocinadores dos ‘'rebeldes'’ sírios, para garantir que seus “prepostos adotados” não cometam atos de provocação.

Lavrov tem todos os motivos para estar satisfeito por Moscou ter negociado uma solução ótima. O que realmente conta é que a resolução não contém nenhum mecanismo que permita sanções contra a Síria no caso de não cumprimento; nem, tampouco, admite qualquer ação militar por potências estrangeiras.

A Rússia também bloqueou qualquer tipo de condenação ao regime Assad por pressuposto uso de armas químicas. De fato, os norte-americanos aceitaram tacitamente uma versão muito diluída da sua doutrina de “linha vermelha” autoproclamada, dado que a resolução distribui o ônus entre os dois lados, regime e “rebeldes”.

Não nos enganemos

Lavrov passou por cima das condições de guerra civil que imperam na Síria e, de fato, a principal lacuna da resolução, avaliada hoje, é não incluir um mapa do caminho para um cessar-fogo.

A probabilidade de a implantação do acordo começar a encontrar dificuldades dentro de poucos meses é terrivelmente alta. Se acontecer, a possibilidade de o Conselho de Segurança aprovar uma segunda resolução nos termos do Cap. 7º da Carta da ONU [que autorize o uso de força militar] é muito remota, dada a tensão que, hoje, ainda persiste entre EUA e Rússia.

Dito em termos claros: a cooperação do regime sírio é absoluta e completamente voluntária. Mas deve-se ter em conta que a resolução priva o regime sírio de vários bilhões de dólares em equipamento militar, que tem sido fator de contenção estratégica de qualquer agressão externa.

No clima dominante entre os protagonistas na guerra civil, engajados em combate mortal e procurando vitória completa, o regime sírio não pode ser dito culpado se decidir conservar , para alguma emergência, uma parte de seus arsenais químicos. Talvez 10% dos arsenais, como disse Henry Kissinger; talvez mais, ou menos. Mas a alta probabilidade de que o faça já está sendo abertamente discutida. 

O presidente da Turquia, Abdullah Gul, foi franco na entrevista que deu à CNN no fim de semana, alertando que “não nos enganemos” com a ideia de que Assad cumprirá o acordo sem a ameaça de força militar. Disse que “se vai haver limpeza real, será maravilhoso. Será bom para todos. Mas se só se vai dar algum tempo, de modo que no fim ainda haja armas químicas [na Síria], nesse caso será perda de tempo”.

Gul é uma das vozes mais moderadas nessa parte do mundo. Mas, vindas de um país envolvido até o pescoço na guerra civil síria, suas palavras não trazem bons augúrios.

De fato, a atitude dos grupos da oposição síria – e, mais importante, dos estados regionais que os patrocinam – é fator altamente crítico. [1] Interessante: ninguém celebrou em Ancara, Amã, Doha ou Riad, a aprovação da resolução do Conselho de Segurança sobre a Síria.

Essas capitais regionais, que participam do jogo pelo poder na Síria, jamais se sentiram confortáveis ante a evidência de que a agenda de mudança de regime tivesse sido superada pela iniciativa da entrega das armas químicas.

Quanto aos grupos da oposição, o quadro é ainda mais desalentador. Estão irrecuperavelmente divididos e cada dia mais furiosamente empenhados em lutar uns contra os outros; mas a única coisa que os une é a rejeição, de todos os grupos, à iniciativa das armas químicas.

O general Salim Idris, líder relativamente moderado do Conselho Militar que, pelo menos em tese, supervisiona o Exército Sírio Livre, disse claramente que “[a iniciativa das armas químicas] não nos interessa”. É trabalho de Washington trazer para bordo a turma de Idris. Mas, como até um comentarista da Radio Free Europe/Radio Liberty já admitiu,

Com a oposição tão negativa, ainda falta quantidade enorme de diplomacia para garantir que os grupos “rebeldes” não concluam que seria de seu máximo interesse sabotar todo o acordo, na esperança de obter uma intervenção militar ocidental que os ajude. Mas é trabalho diplomático complicado, porque os grupos de oposição que mais crescem na Síria hoje, são os islamistas, que não têm nenhum ou quase nenhum laço que os aproxime dos interesses das potências ocidentais.

No que tenha a ver com grupos fundamentalistas linha-duríssima, a situação é realmente apavorante. Semana passada, 13 das principais facções “rebeldes” anunciaram que rejeitam a liderança da oposição no exílio apoiada pelo ocidente; anunciaram simultaneamente a formação de uma “Aliança Islâmica”.

Estima-se que esses 13 grupos controlem dezenas de milhares de militantes [o presidente Bashar al-Assad tem dito “terroristas”] e, como a Radio Free Europe/Radio Liberty observou, “se a Aliança Islâmica se fixar, pode significar que as potências ocidentais não terão influência alguma sobre o que aconteça no solo em grande parte do norte e em partes de Homs e Damasco”.

Tudo isso considerado, se os grupos fundamentalistas entenderem que têm interesse estratégico em capturar os arsenais químicos ou em sabotar, seja como for, a implantação da resolução do Conselho de Segurança, os EUA e seus aliados ocidentais (e Israel) serão arrastados para o conflito. Os mais cínicos podem até dizer que esse horror potencial seria o álibi perfeito para uma intervenção militar ocidental – com ou sem uma segunda resolução do CS-ONU.

Uma pirueta diplomática

Um ponto no qual o cálculo dos russos pode não dar certo está na confiança que Moscou tem em seu poder de veto no Conselho de Segurança. Mas de fato, hoje, alastra-se a indignação contra as credenciais dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (P5) – EUA, Grã-Bretanha, França, Rússia e China. Esse foi tema recorrente nos discursos de inúmeros presidentes na Assembleia Geral da ONU, que está em andamento. Nas palavras de John Key, primeiro-ministro da Nova Zelândia,

Parece que vivemos segundo uma prática pela qual os membros permanentes podem não apenas bloquear ações, pelo veto. Eles também parecem ter acesso privilegiado a informações e podem impedir que o Conselho se reúna, nos casos em que isso interesse aos seus objetivos coletivos.

Key disse à imprensa que o funcionamento do Conselho de Segurança é tão completa farsa, que os diplomatas apressam-se para por fim às discussões e “concluir”, para que todos possam correr ao Twitter para divulgar a “notícia”, antes, até, de informar os membros não permanentes do Conselho de Segurança.

Em resumo, a incrível pirueta diplomática que Rússia e EUA conseguiram executar no caso da Síria, em larga medida criou meios para que as duas superpotências saíssem de uma situação complicada. Os EUA livraram-se de ter de usar força militar (que, provavelmente, jamais seria sua escolha), e a Rússia saiu da posição de “Mr. Não”, aos olhos do ocidente). De fato, foi um casamento de conveniência, que resultou na resolução do Conselho de Segurança.  
Mas não teria a Rússia assumido responsabilidade desproporcional, para criar o “rebento”? 

Considere-se o seguinte:

Obama, hoje, está claramente se acomodando na poltrona de trás, no que tenha a ver com a Síria, e concentra-se na questão do Irã, carregada de consequências profundas, diretas e de longo prazo para interesses vitais dos EUA e para as preocupações núcleo dos EUA e de seus aliados no ocidente e no Oriente Médio – o que a Síria nunca foi nem pode ser.

Assim sendo, restou à Rússia administrar a lata de minhocas? Difícil dizer, mas, sim, o perigo existe e está aí, bem visível.

Por outro lado, os EUA cederam aos russos o lugar de destaque no Conselho de Segurança da ONU. À primeira vista, a possibilidade de um ataque militar dos EUA à Síria está desaparecendo tão depressa e para tão longe, no fundo da cena, que já nem se pode dizer que ainda exista, como preocupação séria, na zona de consideração do pensamento de Obama.

Tudo faz crer que a diplomacia russa alcançou um sucesso extraordinário, que, seja lá como for, é o que transparece para a opinião pública internacional e serve de cenário para uma espetacular “chegada” da Rússia, como potência global, ao cenário do Oriente Médio.

Mas, se se examina mais de perto, há o perigo de que os russos estejam pressionando demais adiante, com seus espetaculares sucessos diplomáticos na Síria nas últimas semanas, ao mesmo tempo em que marginalizam já a comunidade internacional e, sobretudo, a China, o melhor amigo dos russos. Isso, por um lado.

Por outro lado, funcionários russos já disseram que a Organização do Tratado Coletivo de Segurança [orig. Collective Treaty Security Organization (CSTO)] liderado por Moscou, deslocará forças para a Síria para garantir a segurança do pessoal técnico da Organização para a Proibição de Armas Químicas e para guardar os arsenais de armas químicas. Esse CSTO é uma folha de parreira: tudo isso será missão de um contingente militar russo. Ora! E se os “rebeldes” sírios fizerem correr sangue russo em território sírio?

Países como Arábia Saudita e Qatar, patrocinadores e viabilizadores dos “rebeldes” fundamentalistas, sobretudo dos combatentes salafistas, não estão gostando da ideia de haver russos armados se movimentando num gramado que o espião chefe da Arábia Saudita, o príncipe Bandar Sultan, fantasia como seu playground exclusivo.

O útero do tempo

Não que tenha sido alguma espécie de armadilha que Washington tivesse armado para o Kremlin. Mas às vezes acontece que o que parece empenho e decisão para fazer avançar algum projeto diplomático, cheio de boas intenções, resulte em consequências trágicas. O que se vê hoje é que, já e pelos próximos meses, a Rússia estará engalfinhada em combate contra a “jihad” na Síria. E Obama está mudando de assunto.

Depois de dar mão relativamente livre aos russos para que exercessem o privilégio de pôr os pés nos campos minados da Síria, Obama pode concentrar-se em front muito mais produtivo e que terá impacto maior e mais significativo sobre as políticas para o Oriente Médio, que o destino de Bashar Al-Assad: a normalização das relações entre EUA e Irã.

A rapidez com que Obama mudou-se, semana passada, para o Irã, é simplesmente inacreditável. Depois da fala de Obama na Assembleia Geral da ONU, John Kerry reuniu-se com seu equivalente iraniano, Mohammad Zarif. Parece que discutiram um cronograma de um ano, de um mapa do caminho para tirar do impasse a questão nuclear.

John Kerry e Mohammad Zarif (ao centro 2 intérpretes) em 26/9/2013

E enquanto Kerry-Zarif se encontravam, surgiu a excelente ideia de pôr Obama e Rouhani numa conversa por telefone. Aconteceu, é claro, casualmente, pouco antes de Rouhani embarcar para o longo voo até Teerã.

O que se sabe, do relato que Obama fez desse telefonema histórico, tanto quanto do relato de Rouhani é que a árvore das hostilidades entre EUA e Irã começa a despedir-se das agressivas folhas avermelhadas, como árvores no outono.

Rouhani recorreu ao Twitter, quando deixava o solo dos EUA, para relatar a conversa de 15 minutos com Obama. Eis o relato dele, pelo Twitter:

· @BarackObama para @HassanRouhani: Meus respeitos ao senhor e ao povo do #Irã. Estou convencido de que as relações entre Irã e EUA afetarão enormemente a região. Se pudermos progredir na #questão nuclear, outras questões como a #Síria, com certeza serão afetadas positivamente. Faço votos de que o senhor faça boa viagem, em segurança, e peço desculpas pelo exasperante tráfego em #NYC.
· @HassanRouhani para @BarackObama: Sobre a #questão nuclear, com #vontade política há como resolver rapidamente o caso. Estamos esperançosos do que veremos do P5+1 [P5plus Alemanha] e do seu governo em especial, nas próximas semanas e meses. Sou grato por sua #hospitalidade e pelo telefonema. Tenha um bom-dia, senhor presidente.
· @BarackObama para @HassanRouhani: Obrigado. Khodahafez [literalmente, em persa, “Que Deus o acompanhe”].

Que ninguém se engane: Obama tem esperança de voltar à questão síria, no futuro – e de mãos dadas com Rouhani. Até lá, se tratará só – ou, bem, principalmente – do privilégio russo para administrar a lata de minhocas.

O fato de que Obama não cuidou de falar com Putin sobre a Síria durante um mês inteiro, desde o encontro em São Petersburgo, dias 5-6 de setembro, mas falou da Síria no primeiro momento de sua primeira conversa com Rouhani permite adivinhar o que se esconde no útero do tempo. Não apenas deixa ver a deriva das prioridades dos EUA: também revela a alquimia pobre das relações entre EUA e Rússia.

Nota dos tradutores

[1] Terroristas ativos hoje na Síria, por nacionalidade, Relatório de IHS Jane’s, 26/9/2013, Al-Manar, Líbano, com o gráfico que se segue: 

Clique na imagem para visualizar

________________________

30/9/2013, M K BhadrakumarAsia Times Online
Obama moves on Iran, Putin keeps Syria
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Irã, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu,Asia Times Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

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