A pobreza como privação de capacidade, na visão de Amartya Sen

JUSTIÇA DISTRIBUTIVA: PERSPECTIVAS E CONCEPÇÕES
Capítulo 11
A pobreza como privação de capacidade, na visão de Amartya Sen

Uma das questões centrais na busca de perspectivas e concepções de justiça distributiva é, segundo Amartya Sen, o critério de pobreza. O que seria pobreza?

A identificação da pobreza com baixa renda está bem estabelecida, mas, parafraseando Amartya Sen, existe uma literatura bastante substancial sobre suas insuficiências. O foco rawlsiano sobre bens primários é mais abrangente do que a renda (de fato, a renda é apenas um de seus constituintes), mas a identificação de bens primários ainda é guiada, na análise de Rawls, por sua busca por meios úteis para múltiplos fins, entre os quais a renda e a riqueza são exemplos específicos, e particularmente importantes. No entanto, pessoas diferentes podem ter oportunidades completamente diferentes para converter a renda e outros bens primários em características da boa vida e no tipo de liberdade valorizada na vida humana. Assim a relação entre os recursos e a pobreza é variável e profundamente dependente das características das respectivas pessoas e do ambiente em que vivem – tanto natural como social.

Há, na verdade, conforme explicita Amartya Sem, vários tipos de contingências que resultam em variações na conversão da renda nos tipos de vida que as pessoas podem levar. Existem pelo menos quatro importantes fontes de variação:

1) Heterogeneidades pessoais: As pessoas têm características físicas díspares em relação a idade, gênero, deficiência, propensão à doença etc., tornando suas necessidades extremamente diversas. Por exemplo, uma pessoa deficiente ou doente pode precisar de mais renda para fazer as mesmas coisas elementares que uma pessoa menos adoentada pode fazer com determinado nível de renda. Na verdade, algumas desvantagens, como as deficiências graves, podem não ser totalmente corrigíveis, mesmo com enormes despesas em tratamentos e próteses;

2) Diversidades no ambiente físico: Quão longe determinada renda pode chegar dependerá também das condições ambientais, incluindo condições climáticas, como faixas de temperatura ou incidência de inundações. As condições ambientais não precisam ser imutáveis: podem ser melhoradas pelos esforços comuns, ou agravadas pela poluição ou esgotamento. Mas um indivíduo isolado pode ter de aceitar muito das condições ambientais dadas para converter receitas e recursos pessoais em funcionamentos e qualidade de vida;

3) Variações no clima social: A conversão de recursos pessoais em funcionamentos é influenciada também pelas condições sociais, incluindo a saúde pública e as condições epidemiológicas, a estrutura do ensino público e a prevalência ou ausência de crime e violência nas localidades. Além das instalações públicas, a natureza das relações comunitárias pode ser muito importante, assim como a literatura mais recente sobre o “capital social” tende a enfatizar;

4) Diferenças de perspectivas relacionais: Os padrões estabelecidos de comportamento em uma comunidade também podem variar substancialmente a necessidade de renda para realizar os mesmos funcionamentos elementares. Por exemplo, ser capaz de “aparecer em público sem sentir vergonha” pode exigir padrões mais elevados de vestuário e de outros consumos visíveis em uma sociedade mais rica do que em uma sociedade mais pobre (como Adam Smith observou há mais de dois séculos em A riqueza das nações). O mesmo se aplica aos recursos pessoais necessários para tomar parte na vida da comunidade e, em muitos contextos, até para satisfazer os requisitos mais elementares da autoestima. Essa variação é principalmente intersocial, mas influencia as vantagens relativas de duas pessoas localizadas em países diferentes.

Importante observação feita por Amartya Sen é que, na verdade a privação relativa com relação à renda pode produzir a privação absoluta com relação às capacidades. Ser relativamente pobre em um país rico pode representar uma grande deficiência de capacidades, mesmo quando a renda absoluta é alta pelos padrões internacionais. Em um país generalizadamente rico, necessita-se de mais renda para comprar mercadorias suficientes para realizar o mesmo funcionamento social.

Também pode haver algum “acoplamento” de desvantagens entre diferentes fontes de privação, e essa pode ser uma consideração de extrema importância para a compreensão da pobreza e a elaboração de políticas públicas para enfrentá-las. As desvantagens, como idade, deficiência ou doença, reduzem a aptidão de uma pessoa para ganhar uma renda. Mas elas também tornaram mais difícil converter a renda em capacidade, uma vez que uma pessoa mais velha, mais inábil ou mais doente pode precisar de mais renda (para assistência, tratamento ou prótese) para realizar os mesmos funcionamentos (mesmo que essa realização seja, na verdade, possível). Assim, a pobreza real (com relação à privação de capacidade) pode facilmente ser muito mais intensa do que podemos deduzir dos dados sobre a renda. Essa pode ser uma consideração fundamental na avaliação da ação pública de assistência aos idosos e outros grupos com dificuldades de reconversão, além de sua baixa aptidão para obter uma renda.

A distribuição de recursos e oportunidades dentro da família levanta complicações adicionais para a abordagem da pobreza com base na renda. A renda da família aumenta graças a seus membros economicamente ativos, e não a todos os indivíduos que a compõem, independentemente de idade, sexo e aptidão laboral. Se a renda familiar é desproporcionalmente usada para promover os interesses de alguns familiares em detrimento de outros (por exemplo, se há uma preferência sistemática pelos meninos na alocação dos recursos dentro da família), então a extensão da privação dos membros negligenciados (as meninas, no exemplo considerado) pode não estar adequadamente refletida pelo valor agregado da renda familiar. Essa e uma questão crucial em muitos contextos. O preconceito de gênero parece ser um fator importante na atribuição dos recursos da família em muitos países da Ásia e do norte da África. A privação das meninas é mais facilmente e confiavelmente avaliada pela consideração da privação de capacidades que se traduz, por exemplo, em maior mortalidade, morbidade, desnutrição ou negligência médica do que pelos resultados encontrados com base na comparação entre as rendas das diferentes famílias.

Inaptidões, Recursos e Capacidades

Para Amartya Sen, a relevância das inaptidões na compreensão das privações no mundo é muitas vezes subestimada, e esse pode ser um dos argumentos mais importantes para prestar atenção na perspectiva da capacidade. Pessoas com inaptidões físicas e mentais estão não só entre os seres humanos mais necessitados do mundo, como também são, muitas vezes, os mais negligenciados.

Sem traz dados importantes. A magnitude do problema global das inaptidões no mundo é verdadeiramente gigantesca. Mais de 600 milhões de pessoas – cerca de um em cada dez seres humanos – vivem com alguma forma de significativa inaptidão. Mais de 400 milhões delas vivem em países em desenvolvimento. Além disso, no mundo em desenvolvimento, os inaptos são frequentemente os mais pobres dentre os pobres com relação à renda, mas, além disso, sua necessidade de renda é maior do que as dos fortes e são, uma vez que precisam de dinheiro e assistência para tentar ter vidas normais e aliviar suas desvantagens. A deficiência da capacidade de obter renda, que pode ser chamada de “desvantagem da renda”, tende a ser reforçada e ampliada pelo efeito da “desvantagem da conversão”, isto é, pela dificuldade em converter renda e recursos em viver bem, precisamente por causa de suas inaptidões.

A importância da “desvantagem da conversão” devida às inaptidões pode ser ilustrada com alguns resultados empíricos de um estudo pioneiro de Wiebke Kuklys sobre a pobreza no Reino Unido, em uma tese notável concluída na Universidade de Cambridge pouco antes de sua morte prematura em decorrência de um câncer: o trabalho foi posteriormente publicado como livro. Kuklys constatou que 17,9% dos indivíduos viviam em famílias com renda abaixo da linha de pobreza. Se a atenção é deslocada para indivíduos em famílias com um membro incapacitado, o percentual desses indivíduos que vivem abaixo da linha da pobreza é de 23,1%. Esse hiato de cerca de cinco pontos percentuais reflete em grande parte a deficiência de renda associada às inaptidões (as dificuldades das pessoas incapacitadas para trabalhar e suas necessidades de cuidados). Se a desvantagem da conversão é incorporada, e se leva em conta a necessidade de mais renda para melhorar as desvantagens das inaptidões, a proporção de indivíduos em famílias com membros inaptos vivendo abaixo da linha da pobreza salta para 47,4%, uma diferença de quase trinta pontos percentuais em relação à proporção de pessoas abaixo da linha da pobreza (17,9%) para a população como um todo. Em outras palavras, no quadro comparativo dos trinta pontos percentuais adicionais correspondentes à desvantagem da pobreza para os indivíduos que vivem em famílias com um membro incapacitado, apenas cerca de um sexto pode ser atribuído à deficiência de renda e o resto à desvantagem da conversão (a questão central que distingue a perspectiva da capacidade da perspectiva da renda e dos recursos).

Uma compreensão das exigências morais e políticas das inaptidões é importante não só porque é uma característica muito generalizada e muito prejudicial da humanidade, mas também porque muitas de suas trágicas consequências podem realmente ser superadas de forma substancial com determinada assistência social e intervenção imaginativa. As políticas para lidar com as inaptidões podem cobrir um amplo terreno, incluindo a melhoria dos efeitos das desvantagens, por um lado, e os programas de prevenção de inaptidões, por outro. É extremamente importante compreender que muitas inaptidões são evitáveis, e muito pode ser feito não apenas para diminuir a penalização das inaptidões, mas também para reduzir sua incidência.

Na verdade, apenas uma proporção bastante moderada dos 600 milhões de pessoas com inaptidões foi condenada a essas condições quando concebida ou até mesmo ao nascer. Por exemplo, a desnutrição materna e a desnutrição na infância podem tornar as crianças propensas a doenças e deficiências da saúde. A cegueira pode resultar de doenças relacionadas a infecções e à falta de água potável. Outras deficiências podem ter origem na poliomielite, no sarampo ou na AIDS, assim como em acidentes de trânsito e trabalho.

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