Justiça Distributiva: Perspectivas e Concepções (cap 5)

Capítulo V
É POSSÍVEL A JUSTIÇA INTERNACIONAL BASEADA NA CONCEPÇÃO DE UM LIBERALISMO IGUALITÁRIO (IGUALITARISMO E/OU HUMANISMO) GLOBAL? – PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

Segundo a estimativa do Banco Mundial (In data.worldbank.org/indicator, 2012), que só leva em conta a renda e o consumo das famílias, em 2008 havia cerca de 1,3 bilhão de pessoas no mundo que vivem abaixo da linha de pobreza de 1,25 dólar por dia, isto é, que não tinham recursos suficientes nem mesmo para se alimentar de forma adequada. Abaixo da linha de pobreza de 2 dólares por dia, de acordo com a estimativa do Banco, encontravam-se 43,14% da população mundial ou cerca de 2,5 bilhões de pessoas no ano de 2008. O Banco Mundial utiliza linhas de pobreza de 1,25 dólares e de 2 dólares por dia, calculadas pela Paridade do Poder de Compra (PPP, na sigla em inglês) de dólares de 2005. Caem abaixo da linha de pobreza de 2 dólares por dia aquelas pessoas cujo poder de compra por dia é inferior ao poder de compra que 2 dólares tinham nos Estados Unidos no ano de 2005. 

Para Pogge (Political as Usual. What Lies Behind the Pro-Poor Rethoric. Cambridge: Polity Press, 2010, p. 12), essas são pessoas que, por não terem acesso seguro à alimentação adequada, água potável, vestuário, moradia e à assistência médica e educação básicas, encontram-se em condições de pobreza severa. Em Pogge 2010, cap.3 e 4, há uma crítica severa à adoção da linha de pobreza do Banco Mundial (que passou de 1 dólar por dia em 2000 para 1,25 dólar em 2005) para estabelecer o primeiro objetivo da Declaração do Milênio das Nações Unidas (assinada por 191 países em setembro de 2000) de reduzir pela metade, até 2015, o número de pessoas vivendo em condições de pobreza extrema no mundo. 

Pelo critério de “pobreza multidimensional” adotado pelo Relatório do Desenvolvimento Humano de 2010 – UNDP (2010, p. 96), que é mais exigente do que a linha de pobreza de 1,25 dólar por dia, mas que ainda é extremamente austero, e que leva em conta indicadores em três dimensões distintas (saúde, educação e padrões de vida), há 1,75 bilhão de pobres no mundo. Essas são as pessoas que, de acordo com o Relatório, sofrem de privações agudas (que podem não ser adequadamente captadas somente por indicadores de renda e consumo) e que correspondem a cerca de um terço da população de 104 países em desenvolvimento. Para mencionar somente um desses indicadores, ao passo que a expectativa de vida ao nascer é de 54 anos, em média, nos países da África Subsaariana, o mesmo indicador, para os países da OCDE, é de 80 anos. Cerca de um terço das mortes que ocorrem no mundo, ou 18 milhões anualmente, devem-se a causas que são relacionadas à pobreza.

Thomas Pogge (2010, p. 11) dá a ênfase dramática necessária a esta última estatística: “muito mais pessoas – em torno de 360 milhões – morreram de fome e de doenças curáveis, em época de paz, nos 20 anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria do que as que pereceram em guerras, em guerras civis e em virtude de repressão estatal ao longo de todo o século XX”. E quando se passa de indicadores de níveis de bem-estar e desenvolvimento humano em um patamar bastante básico (UNDP, 2010, p. 95) para indicadores de disparidades relativas, os contrastes não são menos gritantes.

Com base em pesquisas domiciliares realizadas em 120 países (e empregando as estimativas das taxas de câmbio pela paridade do poder de compra adotadas pelo Banco Mundial em 2005), Branko Milanovic (Global Inequality and the Global Inequality Extraction Ratio, World Bank, 2009) concluiu que a desigualdade de renda entre pessoas no mundo passou de um Coeficiente Gini de 68,4 pontos em 1998 para 70,8 pontos em 2002 e que os 10% de cima aumentaram sua participação na renda mundial de 51,4% em 1998 para 57,5% em 2002. Os 5% de cima ficaram com quase um terço da renda mundial. Em suma, ao passo que a privação absoluta permanece em patamares muito elevados (embora haja controvérsias sobre a tendência à redução da pobreza de renda), os níveis de disparidade relativa, medida pela renda, tendem a aumentar no mundo.

Essa breve caracterização empírica do problema parece ser suficiente para demonstrar que há razões fortes para tratar as disparidades socioeconômicas no mundo como um problema de justiça. Mas essa avaliação não é aceita nem mesmo por todos os teóricos políticos que acreditam que uma concepção de justiça igualitária deve se aplicar ao âmbito doméstico de uma sociedade democrática. Charles Beitz (1999a e 1999b, pp. 272-280) denominou “liberalismo social” à visão sobre a sociedade internacional que estabelece uma acentuada descontinuidade entre os princípios que se aplicam ao âmbito doméstico e aqueles que se aplicam ao âmbito internacional. Às instituições domésticas cabe a responsabilidade moral primária de garantir o bem-estar dos cidadãos e a justiça social, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade moral de preservar as condições de fundo sob as quais sociedades bem-ordenadas possam se desenvolver. Para essa visão, somente um princípio de assistência humanitária se justifica para tratar de disparidades socioeconômicas – as mais agudas, que dizem respeito à pobreza em um sentido absoluto – no nível internacional.

Que concepção de justiça é a mais justificável – porque capaz de exercer seu papel prático – para as circunstâncias da política global contemporânea, que se caracteriza, de um lado, por uma combinação de condições de globalização econômica, interdependência e aumento da densidade institucional que dão origem a exigências de justiça, e, de outro, pelo fato de que Estados soberanos e separados seguem sendo a unidade básica da organização política mundial? Este é o problema a ser enfrentado, se o que se tem em vista é contribuir para a formulação de uma teoria da justiça socioeconômica global alternativa tanto ao liberalismo social como ao igualitarismo baseado na humanidade. Com o liberalismo social, essa perspectiva alternativa compartilha da rejeição ao monismo na teoria da justiça. Mas a rejeição ao monismo não implica aceitar a tese do liberalismo social segundo a qual, fora das formas de coerção e de cooperação na produção de bens coletivos que são características das relações associativas que Estados soberanos criam entre seus cidadãos, nada se aplica, em matéria de normas de justiça social, que ultrapasse os limites da assistência humanitária. Essa tese do liberalismo social, que é de caráter associativo, foi vigorosamente defendida por Thomas Nagel em um ensaio de 2005 (The problem og global justice. Philosophy and publica affairs, 33, nº 2, pp. 113-147).

Se efeitos distributivos significativos podem ser imputados a relações associativas geradas por uma “estrutura básica global”, então aqueles que hoje são os beneficiários desses arranjos institucionais encontram-se sob uma obrigação de justiça, quer reconheçam isso ou não, de alterá-los no sentido de promover a abolição da pobreza severa no mundo. Não podemos supor – o que é uma implicação do liberalismo social – que organizações e agências internacionais como a OIT, o Banco Mundial, o FMI e a OMC possam tomar decisões consequenciais sobre normas internacionais em um vazio normativo. Entre outras considerações que podem ser relevantes (como as que dizem respeito a normas de governança), exigências de justiça socioeconômica têm de ser levadas em conta. Mas, em contraste com a posição defendida pelo cosmopolitismo baseado na humanidade, essas exigências são mais bem captadas, normativamente falando, por uma concepção não comparativa de justiça que tem por componente central uma ideia de direitos humanos básicos.

Essa argumentação compartilha, com o cosmopolitismo baseado na humanidade, da premissa do cosmopolitismo moral tal como formulada por Thomas Pogge (World Poverty and Human Rights – Second Edition. Cambridge: Polity Press, 2008, p. 175): (1) seres humanos, ou pessoas, são as unidades fundamentais de preocupação moral; (2) o status de unidade fundamental de preocupação moral estende-se igualmente a todos os seres humanos; e (3) esse status especial tem força global. Mas o que se segue dessa premissa do cosmopolitismo moral é uma concepção não comparativa de justiça e não, como sustenta o cosmopolitismo baseado na humanidade, uma concepção de justiça global igualitária. Recordemos que, para uma perspectiva relacional ou associativa, uma concepção de justiça só se justifica se for capaz de desempenhar seu papel prático. E, para cumprir com essa condição, é preciso que a concepção em questão especifique que exigências as instituições existentes devem satisfazer para que possam ser justificadas a todos que estão sujeitos aos seus efeitos. Quando se trata da justificação de uma concepção de justiça global, essa justificação é condicionada por uma ideia de legitimidade internacional.

Somente direitos humanos internacionais podem oferecer um padrão de justificação e de legitimidade internacionais em uma organização política mundial – e isso é um fato sobre os arranjos institucionais existentes, que não pode ser ignorado na justificação de uma concepção de justiça global – na qual Estados soberanos e territoriais ainda constituem a unidade básica. Desse ponto de vista, certos interesses humanos fundamentais só se qualificam como direitos humanos internacionais se a violação ou a não garantia desses direitos, no âmbito doméstico, constituírem razões suficientemente fortes para justificar a imputação de deveres a organizações e instituições internacionais.

O que deve contar como direitos humanos internacionais, quando disparidades socioeconômicas estão em questão, é parte da discussão. Mas, como quer que sejam concebidos, direitos humanos internacionais não podem ser equiparados aos direitos especificados por uma teoria da justiça tal como, por exemplo, uma teoria liberal-igualitária de justiça distributiva, porque, como observa Charles Beitz (The Idea of Human Rights. Oxford: Oxford University Press, 2008, p. 128), “os direitos humanos são questões de preocupação internacional e não é plausível sustentar que a comunidade internacional deva ser responsabilizada pela justiça de suas sociedades componentes”. Especificamente, direitos humanos antipobreza, como os direitos à alimentação, vestuário, moradia, assistência médica e à educação básica, somente estabelecem um padrão não comparativo de bem-estar, um patamar básico cujas exigências devem ser compatíveis com uma diversidade de concepções mais exigentes de justiça social que podem ser realizadas em âmbito doméstico. E realizá-las, em âmbito doméstico, desde que o patamar básico seja garantido, só pode ficar por conta, enquanto o mundo for dividido em Estados soberanos, da autodeterminação política nacional.

Em suma, contra o liberalismo social, o argumento será o de que o esquema institucional da ordem global impõe obrigações internacionais que vão além da assistência humanitária; mas, contra o cosmopolitismo baseado na humanidade, o argumento será o de que aquilo que é distintivo do critério de justiça aplicável a essa ordem não é o igualitarismo, e sim, se queremos que seja justificável, um padrão não comparativo de bem-estar especificado por certo rol de direitos humanos básicos. Como “utopia realista” para a estrutura básica de uma sociedade democrática, as exigências da justiça expressam-se em uma ideia de “consideração igual, status igual e oportunidades iguais”. Como “utopia realista” para a sociedade internacional, as exigências da justiça expressam-se em uma posição de “suficiência, não igualitarismo”. Como esse padrão de suficiência deve ser entendido é parte do problema.

Segundo o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998, o indiano Amartya Sem, em seu livro Desenvolvimento como liberdade, editado no Brasil no ano de 2000 e escrito com base em cinco palestras que o mesmo proferiu como membro da presidência do Banco Mundial (Bird), quatro em 1996 e uma complementar em 1997, para um público formado praticamente apenas por membros (funcionários e colaboradores) dessa organização, não obstante:

a abundância nunca vista, de governos democráticos e participativos, direitos humanos e liberdade política no discurso dominante, esperança de vida elevada e grande interação entre as diferentes zonas do globo, existe a persistência da pobreza e necessidades elementares insatisfeitas, fome e subnutrição, violações das liberdades políticas e das liberdades básicas, desprezo pelos interesses e atividades das mulheres, ameaças ao ambiente e à sustentabilidade da nossa vida econômica e social.

Para tanto, segundo ainda o referido autor:

Configura-se a necessidade de uma análise integrada das atividades econômicas, sociais e políticas, particularmente das interações entre certas cruciais liberdades instrumentais, tais como as oportunidades econômicas, as liberdades políticas, os serviços sociais, as garantias de transparência, a segurança protetora.

Consoante o entendimento esposado por Amartya Sem, são cinco as espécies de liberdade, vistas sob uma perspectiva instrumental, quais sejam, as liberdades políticas, as disponibilidades econômicas, as oportunidades sociais, as garantias de transparência e a proteção da segurança. Na perspectiva do “desenvolvimento como liberdade”, as liberdades instrumentais ligam-se umas às outras e com os fins de plenitude da liberdade humana em geral.

Ressalta Amartya Sen que:

“A maioria da população mundial sofre de diversos tipos de privação, a muitos milhões é mesmo recusada a liberdade básica de sobreviver, como a privação de alimentos, privação de uma nutrição adequada, privação de cuidados de saúde, privação de saneamento básico ou água potável, privação de uma educação eficaz, privação de um emprego rentável, privação de segurança econômica e social, privação de liberdades políticas e direitos cívicos.”

Sobre tipos de liberdade e significados, continua o ilustre economista:

Há cinco tipos de liberdade que merecem ser destacados na perspectiva instrumental: liberdades políticas, dispositivos econômicos, oportunidades sociais, garantias de transparência e previdência social.

Estas liberdades reforçam-se mutuamente, são coesas.

As liberdades políticas referem-se às possibilidades que as pessoas têm de decidir quem e segundo que princípios deve governar, e inclui a possibilidade de vigiar e criticar as autoridades, de gozar da liberdade de expressão política e de uma imprensa sem censura prévia, de escolher entre diferentes partidos políticos, etc.

Os dispositivos econômicos respeitam as oportunidades de que os indivíduos dispõem para utilizar os recursos econômicos para consumo, produção ou troca. Na relação entre rendimento e riqueza, por um lado, e capacidades econômicas dos indivíduos, por outro, as preocupações distributivas também são importantes.

As oportunidades sociais estão relacionadas com os dispositivos que as sociedades organizam em favor da educação, dos cuidados de saúde, etc., que têm influência na liberdade concreta de os indivíduos viverem melhor. A iliteracia (incapacidade para perceber ou interpretar o que é lido - grifo) pode ser um obstáculo de monta à participação nas atividades econômicas, ou à participação política.

A sociedade funciona com base numa presunção básica de confiança. As garantias de transparência dizem respeito à necessidade de abertura que aspessoas podem esperar. Estas têm um papel evidente na prevenção da corrupção, da gestão irresponsável e dos arrangismos subterrâneos.

É necessária previdência social para proteger as pessoas da miséria. Este tipo de liberdade inclui dispositivos como subsídio de desemprego ou bancos alimentares.

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